Harrison Ford: entre o herói malandro e o homem comum
O talento de ator teve um reconhecimento tardio mas compensador. Quem juntou num só corpo as vidas de Han Solo e de Indiana Jones merece o aplauso. Faz hoje 75 anos
Se o calendário de Hollywood bater certo, o quinto e último filme da saga de Indiana Jones, arqueólogo e aventureiro, vai estrear três dias antes de o seu protagonista completar 75 anos de idade. Para um herói que usa tanto a inteligência e o humor como a destreza física, fica lançado um enorme desafio à resistência de Harrison Ford, um nativo de Chicago, Illinois, que nunca negou o desejo de "cumprir o contrato" e de alcançar o penta com o professor pouco ortodoxo criado por George Lucas e Philip Kaufman. Caso venha a concretizar-se a data prevista da estreia - 10 de julho de 2020 -, Indy terá "resistido", entre as sessões inaugurais do primeiro e do derradeiro dos seus filmes, nada menos de 39 anos e quase um mês.
Tempo de sobra para combater nazis e fanáticos religiosos, para mostrar paixões (até, na segunda fita, Kate Capshaw, mais tarde mulher do "patrão" Spielberg) e para apresentar a família, pai (Sean Connery) e filho (Shia Labeouf).
Ford, que faz hoje 75 anos, tinha quase 40 quando vestiu o casaco prático e começou a usar o chapéu e o chicote de Indiana. O que deve tornar mais penosa ainda a despedida da personagem para a qual tanto contribuiu, até pelas vias menos ortodoxas. Por exemplo, o célebre gag de Os Salteadores da Arca Perdida em que, diante de um espadachim ameaçador e exibicionista, cheio de jogo, se limita a levar a mão ao coldre, sacar a pistola e disparar, pondo fim à questão (no filme seguinte, Mr. Jones tenta repetir a graça, mas o coldre está vazio...). Não serão muitos os que sabem que essa solução foi proposta pelo ator ao realizador; serão ainda menos os que estão a par do facto de essa ser uma solução de recurso, porque Harrison Ford se debatia com um violento desarranjo intestinal e não aguentava muito tempo em pé...
Deve ser levada em conta a circunstância de Han Solo, o homem que namorou a Princesa Leia e foi o grande cúmplice de Luke Skywalker, já ter ido desta para melhor -- ingloriamente, morreu às mãos do filho traidor, Kylo Ren, em O Despertar da Força. Não deixa de ser irónico: os argumentistas optaram pela morte de Han Solo, cujo ator de sempre continua vivo e ativo, ao mesmo tempo que prolongaram a existência de Leia, de princesa a generala, não contando com a morte da atriz Carrie Fisher. Lá vão as imagens geradas por computador ter de entrar em cena...
As sagas e as manias
Além da sua participação nos épicos de Indiana Jones e de A Guerra das Estrelas, Harrison Ford - que, durante anos, acumulou as suas presenças como ator com a condição profissional de carpinteiro de alto gabarito -- parece gostar de sagas: participou nos dois capítulos de American Graffiti, deu por duas vezes vida e alma a Jack Ryan, o inesperado herói de Tom Clancy, esperou 35 anos para reencontrar o seu inesquecível Rick Deckard, o renitente e cético investigador/polícia de Blade Runner: Perigo Iminente e, muito em breve, de Blade Runner 2049. Carismático e participativo, também não carrega consigo a imagem de um ator que dê trabalho aos realizadores com quem trabalha. Prova disso mesmo é que muitos, e dos mais destacados, repetiram a experiência de o chamar aos seus elencos. O primeiro foi mesmo George Lucas que, depois de American Graffiti, teve de ser convencido quanto à convocatória de Ford para o arranque de Star Wars. Depois vieram Francis Ford Coppola (O Vigilante e Apocalypse Now, com Harrison no papel do coronel Lucas...), Peter Weir (A Testemunha, que valeu ao ator a única nomeação para o Óscar, e A Costa do Mosquito), Phillip Noyce (Jogos de Poder -- O Atentado e Perigo Imediato), Mike Nichols (Uma Mulher de Sucesso e O Regresso de Henry), Alan J. Pakula (Presumível Inocente e Perigo Íntimo) e Sydney Pollack (o remake de Sabrina e o notável Encontro Acidental).
Para uma carreira de 51 longas-metragens (mais uma a estrear, a tal sequela de Blade Runner, e outra prometida, o longo adeus de Indiana Jones), não está nada mal, sobretudo se acrescentarmos mais alguns "notáveis" da direção, com quem Ford se cruzou -- de Michelangelo Antonioni a Roman Polanski, de Robert Zemeckis a Kathryn Bigelow, de Richard Loncraine a Dennis Villeneuve. Além dos heróis que vão passar incólumes de uma geração a outra, há uma predileção de Harrison Ford por polícias, militares, investigadores e agentes do poder, que lhe renderam mais de dezena e meia dos seus filmes. E também pelo homem comum "apanhado" em circunstâncias que o obrigam a superar-se: bastaria recordar o médico que vê a sua mulher raptada à chegada a Paris, em Frenético (Polanski), ou o informático bancário que é forçado a colaborar com os bandidos que mantêm refém a sua família, em Firewall (Loncraine). De resto, a sua queda para estas variáveis do "homem sem qualidades" ficam à vista nos nomes das suas personagens -- em mais de meia dúzia de ocasiões, ele foi Jack, ou John, ou Joe. Nada mais banal...
Ligado à arqueologia na vida real (e não apenas como Indiana), gosta de pilotar o seu avião particular em que já registou dois perigosos acidentes, que se traduziram nuns quantos ossos partidos. Em compensação, já salvou da morte uma alpinista desidratada, aí pilotando um helicóptero. Tem cinco filhos de três casamentos. Para alcançar o último, quando se separou da segunda mulher, Melissa Mathison, argumentista de E.T., O Extra-Terrestre e de Kundun, e antes de voltar a casar, com a atriz Calista Flockhart, que nos remete de imediato à série Ally McBeal, bateu um recorde: o do divórcio mais caro de Hollywood, até à data. Já foi ultrapassado três vezes -- e isso diz muito sobre os nossos tempos.