Gael García Bernal. "Depois de ver Neruda fiquei muito mais romântico"

Estreia-se na quinta-feira Neruda, sobre o Prémio Nobel chileno. O filme de Pablo Larraín tem Gael García Bernal como vilão e recusa a hagiografia. O ator mexicano falou ao DN em Cannes, onde o filme causou comoção na Quinzena dos Realizadores.
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Em Neruda não temos Gael García Bernal a fazer uma versão jovem do poeta. O ator mexicano é o polícia que a ditadura chilena colocou no encalço de Pablo Neruda. Temos um Gael sofisticado e num registo de mau da fita que não lhe é comum. Em Cannes, falou-nos do seu amor pela poesia, de como sente Pablo Neruda e percebemos que não esqueceu Fernando Pessoa.

Em todos os filmes de Pablo Larraín parece haver um desejo de mudança. Estilisticamente este não tem nada que ver com o anterior O Clube. O Gael já tinha trabalhado com ele em Não e a abordagem estética não recorria de todo a este classicismo... Interrogo-me se ele chega a explicar aos atores essas mudanças e, se o explica, de que maneira...

Sim, mas ao mesmo tempo usa as mesmas lentes. Parece diferente porque ele faz realmente filmes diferentes uns dos outros. Em Neruda tudo parece mais bonito porque é poesia, é uma outra tarefa, mas, repito, ele usa as mesmas lentes e o mesmo recurso de fragmentar as cenas. Está é tudo muito bem gerido. Como ator não sinto grande diferença.

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Acredita que é possível chamar a verdadeira poesia para o cinema?

Nesse aspeto, o Larraín é muito humilde. A justaposição das imagens e o seu efeito de semiótica tornam a coisa extremamente poética. Creio que o cinema cada vez mais deveria ser poesia ao passo que as séries de televisão deveriam ser romances literários. O cinema deveria ser o lugar para a poesia, não se deveria limitar a ser uma boa história. Aqui lidamos com um poeta e com poesia e o resultado é espantoso. Neruda é uma obra de cinema muito poética! Uma exaltação de poesia e isso é tão difícil. Impossível não é, mas é complicado!

Por outro lado, a sua personagem parece vir da literatura policial.

Não é uma personagem verdadeira, só o nome do tipo. Inventámos tudo. E acontece uma transformação ao longo do filme: a dada altura ele começa a cultivar a poesia. É como se a poesia começasse a moldá-lo e a dar-lhe vida, bem vistas as coisas. Sinto que ele está numa demanda para ter uma identidade própria. Trata-se de alguém que demonstra aquilo que a poesia é capaz de fazer às pessoas. O filme tem estes dois extremos: um poeta livre que defende a ambiguidade e a exaltação da vida e um polícia que está privado de qualquer introspeção e que segue ordens. Eu interpreto essa figura ressabiada. Dois dias antes da rodagem lembrei-me de propor ao Pablo [Larraín] que ele deveria ser filho de uma prostituta para dar à personagem aquela ideia de que a poesia não passou por ele. Por outro lado, a poesia de Neruda era lida por pessoas como ele. Eu queria que essa inabilidade de ele ter contacto com a poesia fosse o ponto de partida para a construção da personagem. Havia também a hipótese de o construirmos como uma figura fascista e misógina, mas quando ele chega ao bordel é como se tivesse a chegar a casa. Ou seja, ele tem algum sentimento de proteção com as mulheres. Qualquer uma delas pode ser a sua mãe. Não é preciso irmos tão longe para procurar a ideologia e os pilares do fascismo. O fascismo nasce da falta de amor, aliás, as pessoas matam por falta de amor. Sou da opinião que o amor iria ajudar muita gente. No meio de tudo isto é a poesia que dá sentido a tudo. Depois de ver o filme - e não de o fazer - a minha apreciação pela poesia mudou: estou muito mais romântico. Ao fazer este filme coloquei muitas questões e pergunto: não é incrível o papel que a poesia ocupa nas nossas vidas hoje em dia?! Antes a arte era um dos pilares para o nascimento de uma nação. Depois da Segunda Guerra Mundial os intelectuais eram os homens do Estado! Tudo isso fez que tivéssemos a liberdade que desfrutamos! Agora!? Bem, imaginem um poeta a ter influência nos EUA...

Curiosamente o vosso filme mostra também o lado menos simpático de Pablo Neruda, em especial toda a sua vaidade.

Fizemos isso porque este é um filme que reflete sobre a busca da igualdade. Hoje o preço da democracia vem desse desejo. A igualdade de hoje tem que ver com dinheiro? Ou passa por todos sermos iguais num sistema de justiça? Pablo Neruda tinha dinheiro e essa é uma discussão interessante. No pós-guerra o comunismo e o capitalismo tinham uma resposta. Os seus defensores eram capazes de morrer para a defender. Todos os artistas que defenderam essa resposta, seja de que lado for, caíram numa crise. Neruda é de um tempo em que o comunismo era o vencedor, tinha vencido a guerra. Viveu os tempos de uma nova esperança, os tempos de um novo mundo. Só que um artista que defendia a ambiguidade acaba por ter problemas. Por exemplo, o comunismo não contemplava ambiguidade. É talvez devido a essa crise que os políticos se tenham separado da arte. Mas não estou a dizer que a arte não é política; é política! Toda a arte é política. E a política tem de estar separada da arte por ser cansativa e contraditória. Além do mais, a arte não faz ganhar votos imediatos, ao contrário dos números.

Mas não pensa que toda a arte é percecionada como um instrumento da esquerda?

Aqui em França o século XX foi construído por poetas. Foram eles que criaram uma essência de comunhão à base de uma nova esperança. Em Itália houve também aquele período nos anos 1970 onde se tentou ilustrar aquela ideia de que todas as crianças tinham direito à escola. Onde estamos agora, meu Deus? Não vejo essa questão como algo entre a esquerda e a direita. A arte e a poesia, no seu melhor, defendem é a anticorrupção, o romantismo e a honestidade. A política deveria incluir mais arte. Estou a ser naive, eu sei, mas não há muito tempo tínhamos o Havel na Checoslováquia e o Mojica no Uruguai. A arte é importante no poder para encontrarmos respostas ambíguas para responder às nossas perguntas mais difíceis.

Como latino, como vê a importância de Neruda?

Podemos concordar que é a maior estrela da poesia do século XX. Penso que só pode ser comparado a Pessoa. Mas se for à China perguntar qual é o mais famoso poeta do século passado vão também dizer Pablo Neruda. E, curiosamente, vem de um país pequeno. Foi ele que nos deu as palavras para escrevermos cartas de amor para as nossas namoradas. Aconteceu--me a mim, confesso. Também confesso que depois não resultou, a rapariga não ficou comigo. Não quis nada comigo. Ela é que ficou a perder... Mas a verdade é que fiquei feliz por estar a usar poesia. Outra coisa incrível com Neruda era o seu poder precisamente com as mulheres. Não era bonito mas era um conquistador - sabe-se que dormiu com centenas de mulheres. Isso prova o poder da imaginação! O segredo dele e de todos os poetas é serem maiores do que a vida e, no caso de Neruda, ter um grande ego.

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