Filipa Martins: "Pedi-lhe que me dissesse de cor um poema"

A escritora Filipa Martins persegue Sophia de Mello Breyner Andresen na Feira do Livro de Lisboa
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Juro-vos que era ela. Ela avisara que voltaria para vir buscar os momentos que não vivera junto ao mar, mas talvez naquela tarde de temperos estios - porque antigamente as primaveras não se faziam rogadas, como damas virtuosas, e exibiam-se - eu achei que a mensagem era fruto da liberdade poética da autora, uma metáfora. Na minha cabeça, devo dizer no meu sonho, Sophia de Mello Breyner Andresen teria voltado, não para sentir a ondulação da Granja, antes para vaguear entre expositores de livreiros (os independentes seriam em maior número à época) no Parque Eduardo VII, irritar-se por se ver exposta, lombada com lombada, a par de outras poetas mais exuberantes (conta-se que ela e a Natália tinham as suas coisas) e comer churros com recheio de morango.

Não recordo qual o ano da graça, mas lembro-me dos meus enamoramentos: tropeçava de ternura também por Sylvia Plath, pela casa vestida à justa de paredes onde Nemésio abrigava uma Margarida que afinal era Maria Pereira de batismo, por Pessoa na versão Álvaro de Campos - eu tão vanguardista e cosmopolita, pouco tinha da adolescência de saltos altos, só me permitia sentir - e, claro, por Sophia. E lá estava ela: a figura esguia, o chapéu de abas ligeiramente inclinado como constava no livro de português, a bainha do vestido a sombrear o tornozelo, os dedos finos impacientes a levar o cigarro aos lábios, o cabelo num arranjo de novelo. A elegância antiga (antiquada?) que, se não fosse o meu enlevo, poderia ter considerado decadente. Fiz o que qualquer pessoa lúcida faz quando divisa a silhueta de uma poeta morta que endeusa entre a mole: segui-a.

Padecia da mesma excitação de Vargas Llosa, jovem e tradutor, quando conseguiu entrevistar Borges durante uma passagem deste em Paris. E, podendo chegar à fala com a figura alada, talvez a minha primeira pergunta não fosse diferente: qual é a razão da sua visita? E, de seguida: lê-me um poema? O seu preferido. As parecenças físicas eram, com o passar dos minutos, ainda mais evidentes, mas achei-lhe os gestos exóticos ou, pelo menos, pouco previsíveis. Paragens demoradas em bancas de capas garridas, atraída pelas cores vivaças e antidepressivas da autoajuda; a beata atirada para o chão com desleixo; uma fartura partilhada num banco com gatos vadios que se pronunciavam. Mas o mais desconcertante foi a lista de aquisições, tão pouco ao gosto da miúda arrogante em que me tornei depois de vencido o segundo volume de Guerra e Paz (a sorte é que a vida me deu e vai dando as suas lições). Com o tempo fiquei menos cauta e a distância que nos separava no início da minha perseguição encurtou-se com o passar dos minutos (assumirei horas, porque a isso me levou o sonho). Ao ponto de a perseguida se aperceber da perseguição e, num arremedo de fuga, cruzar a esquina de uma banca para se diluir entre os transeuntes.

Não consigo descrever o meu desapontamento. Prostrada, tentei voltar a mim, recolher os cacos daquele quase encontro post-mortem com uma figura de adoração. Até que fui surpreendida de costas por uma voz, não a voz que previsivelmente atribuiria a Sophia, mas outra. A figura, lá está, era a mesma e, naquela voz que naturalmente não seria a voz de Sophia (não perguntem mais porque pouco percebo sobre a forma como as vozes dos mortos se eternizam), perguntou-me: "Se vais andar o resto da tarde a seguir-me, não queres ajudar? Tenho ciática." E, sem que me desse tempo para lhe responder, passou-me o Paulo Coelho e a Margarida e as Dicas da Júlia para o braçado.

Fiz como tinha pensado: perguntei-lhe o que a levara à Feira do Livro e pedi-lhe que me dissesse de cor um poema. Confidenciou-me que se sentia sozinha, com muitos gatos e muitas plantas, e que ali sempre via gente, mesmo que fosse gente louca que seguia os outros entre os livros. E, depois, recitou-me três versos de uma quadra de Santo António, perdendo-se na última frase. Ali estava ela, a minha Sophia, um leve odor a cânfora a emanar-lhe do vestido, estendendo-me meio conto de reis na moeda antiga por a ter aliviado do peso da literatura light, manuais de gatinhos, edições da Paulinas e a saga da Veronika, que decidiu morrer, auxiliando-a até à boca do metro. Rodei nos calcanhares, inchada de orgulho por ter falado com uma grande poeta portuguesa.

A minha Sophia morreu em 2007, três anos depois da outra que vocês conhecem.

O livro que eu queria encontrar na Feira: "Ninguém Espera por Mim no Exílio, João Paulo Sousa"

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