"Eu não vejo um prédio velho, imagino o edifício acabado de recuperar"

Almoço com Rodrigo Machado Soares, arquiteto e fundador da RMS Architects
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Quando Rodrigo Machado Soares foi convidado para desenhar o projeto de um hotel de 800 quartos em Dacar, não imaginava a aventura em que estava a meter-se. Foi esse caminho, feito enquanto "esgravatador nato", como o descreve, que o levou a trocar a sociedade numa das maiores casas de arquitetura mundiais, a Saraiva e Associados, pelo atelier a que deu o nome e se dedica totalmente. Há de contar-me numa conversa à mesa da Delfina-Cantina Portuguesa, em plena Praça do Município, num dia de tamanho calor que a esplanada não é uma opção, como se apaixonou pelas muitas Áfricas que existem e como ganhou um enorme carinho por um povo tão diferente do europeu, ainda que não escolhesse para viver outro sítio que não Lisboa.

"A cidade está linda, há aqui arquitetos muito bons que mudaram Lisboa para melhor. O que fez mais diferença nos últimos tempos foi o Manuel Mateus - que tem projetos extraordinários mas sobretudo uma perceção da importância da arquitetura que chega às pessoas. E a maioria dos lisboetas aceita, entende e gosta da sua arquitetura na cidade. Isso ajudou a que saíssem daquela zona de conforto em que só aceitavam o prédio amarelo com pedra à volta da janela." Fazer parte deste processo de transformação é uma ambição que assume, a par do desejo de ser reconhecido pela classe. Aos 42 anos, usa o humor como meio para revelar onde quer chegar, mas há ali um orgulho natural de quem vê nascer obra. "É rara a profissão em que se deixa realmente um legado à vista, como acontece na arquitetura - um médico salva vidas, mas eventualmente toda a gente morre. Eu quero atingir aquele patamar em que é reconhecido que a arquitetura que fazemos na RMS Architects é mesmo boa, independentemente de ficar rico por isso - gramava à brava ficar rico, mas não é uma prioridade."

Não se queixa de falta de dinheiro, mas tem uma relação pouco comum com o que se pode comprar: gosta do melhor que há mas não se importa de demorar a consegui-lo. "Só janto fora quando posso ir ao melhor restaurante", explica. Falar das aventuras que viveu, da sua paixão pela arquitetura, dos projetos que tem em mãos entusiasma-o e fá-lo esquecer os nervos iniciais próprios de quem não está habituado ao mediatismo - ainda que o seu portfólio o justificasse. Encontro-o sentado com um copo de Planalto na mão para quebrar a insegurança "desta espécie de blind date" cujo gatilho foi a escolha de Rodrigo como arquiteto para planear a Place de l"Independance, quase uma Avenida da Liberdade à medida de Dacar, Senegal. No coração da cidade, "aquilo estava em muito mau estado, tinha um estacionamento caótico, e perguntaram-me se eu não arranjava um paisagista para arranjar aquela praça". Rodrigo achou que não era de mudanças estéticas que o lugar precisava e no início deste ano apresentou um projeto "com a praça a elevar-se do chão e a entrada para o estacionamento escondida por uma cascata a ligar os elementos da cidade à natureza. Cá, podemos ter uma praça linda à frente, com uma escultura extraordinária e ninguém liga peva. Ali, este género de coisas são um orgulho, a população vive aquilo, toma conta, os miúdos brincam na água..."

A obra ainda está no papel, mas os olhos do arquiteto já a encontram viva. É talvez essa visão distinta que o faz eleger Abidjan, na Costa do Marfim, como a "cidade com maior potencial de beleza. É de cortar a respiração, mas é preciso abstração: eu não vejo um prédio velho, imagino um edifício acabado de recuperar, a forma como a natureza e a cidade se relacionam é extraordinária, as lagoas, os braços de mar, os rios que entram por Abidjan..." Ali, foi escolhido para desenhar o concept design do Hotel Ritz, depois de um almoço com o primeiro-ministro da Costa do Marfim, Amadou Gon Coulibaly, e o grande amigo senegalês que o introduziu nestas lides, Loum Diagne - que o trata por petit frère, apesar de ter quase o dobro da idade de Rodrigo, e de quem este fala com imensa admiração.

Foi Diagne, aliás, o culpado por Rodrigo acabar por abrir o seu próprio gabinete de arquitetura, onde trabalham já sete arquitetos. A RMS Architects tem hoje projetos no Senegal, no Gana, na Costa do Marfim, no Ruanda, nos Camarões, no Gabão... Já o acompanho no vinho branco, bem fresco, quando pedimos os filetes de peixe-galo com arroz de tomate e lhe pergunto como se tornou esta espécie de eleito europeu numa África que não é aquela onde tradicionalmente encontramos portugueses. Conta que tudo começou quando estava ainda no escritório de Miguel Saraiva, como sócio responsável pela área de exportação da Saraiva e Associados e com particular foco naquele continente. "Em julho de 2009, apareceu lá um senegalês mandatado pelo seu presidente para encomendar um hotel de 800 quartos para acolher pessoas de todo o mundo que iriam a Dacar para o Festival Mundial das Artes Negras. Era uma coisa provisória, que seria desmantelada a seguir. Problema: o hotel tinha de estar pronto em outubro. E ele ainda ia consultar outros gabinetes em Milão. Fiquei nervosíssimo, porque nós, arquitetos, odiamo-nos todos uns aos outros..." - o que só lhe deu mais energia para desenhar o projeto vencedor. "Era um terreno enorme que ia até ao mar e pensei construí-lo todo numa espécie de contentores de cores diferentes, organizados em quarteirões, com umas varandas à volta por onde se fazia a circulação e no meio de cada quarteirão umas tendas para os convidados dançarem, fazerem fogueiras, conviverem e uma maior com o food court..." Loum Diagne não hesitou em adjudicar-lhe o trabalho e na inauguração Rodrigo admite que até se emocionou. "Os arquitetos são sempre uns românticos, mas é raro ter oportunidade de concretizar esses projetos de sonho. E quando ali cheguei e vi aquelas cores todas, os panos africanos pendurados nas varandas, música por todo o lado, até fiquei comovido."

É isso talvez o que mais o atrai em África - "em Portugal, pedem-nos para desenhar 32 apartamentos com determinadas áreas e características e quase não há margem de manobra; no Senegal, dizem-nos: quero um edifício de apartamentos extraordinário em tal sítio e vou chamar-lhe Terrace, e a partir daí temos de imaginar tudo". E o primeiro contacto bem-sucedido com Loum Diagne não só lhe abriu muitas portas como lhe garantiu uma quantidade de oportunidades de se superar profissionalmente. Como se comprova pela lista de projetos que Rodrigo Machado Soares tem na calha, incluindo um Club Med a cem quilómetros de Dacar, um Ritz em Abidjan e um Sheraton no extremo ocidental do Senegal. Conquistas que orgulham o arquiteto, mas sobretudo que o entusiasmam quando excedem o edifício em si.

Explica-mo, já com os saborosos filetes a desaparecer ao ritmo das garfadas de arroz malandrinho e com os copos de novo cheios. "Um projeto que é semente, cresce para lá dos limites do terreno, para lá de si próprio. E é aí que se pode fazer a diferença. O Ritz, por exemplo, tem um impacto muito forte no desenvolvimento de uma zona caótica da cidade, vai estruturar aquela parte, tem impacto urbano, constrói vida. A primeira vez que entrei em Abidjan, a guerra tinha acabado há três meses, estávamos a relançar o centro da cidade e não havia ninguém lá." Também em Dacar, o seu hotel temporário criou raízes: "Quem anda pelas redondezas deve interrogar-se por que raio há, no meio do nada, um contentor roxo transformado em posto de polícia, uns quilómetros à frente outro verde..." Efeito do aproveitamento dos materiais, na sequência da desmantelamento do hotel, quando o festival terminou. É disto que gosta, de fazer a diferença, e por isso considera-se muito mais útil em países como a Costa do Marfim ou o Senegal do que em Angola ou Moçambique - onde no entanto também tem edifícios com a sua assinatura.

A veia africana herdou-a do pai, que tinha negócios em São Tomé e por lá passava seis meses em cada 12. Curiosamente, Rodrigo é o único dos seis irmãos que se deixou seduzir por África, onde já passou também temporadas equivalentes a metade do ano mas que hoje, com quatro filhos (entre os 6 e os 17 anos) e duas separações "no cadastro", reduziu para cerca de uma semana por mês. Conta-me que tirou o curso na Lusíada e ainda recorda três professores que foram fundamentais para a sua formação e uma lição que até hoje repete aos que trabalham com ele: "Estava a desenhar uma parede e ele disse-me "esses dois riscos que aí tens, essa parede, isso é distância concentrada". Aquilo ficou-me marcado." E isso é óbvio quando se olha para os seus projetos, quase todos de janelas rasgadas e surgindo como um prolongamento do ambiente em que se inserem.

Como o almoço foi tardio, o restaurante já está quase esvaziado de clientes e aproveitamos para tomar os cafés lá fora, onde posso fumar - Rodrigo deixou-se disso há um par de meses. Diz-me que África também lhe ensinou uma valiosa lição: lidar com a frustração. "Os concursos são sempre esquizofrénicos e eu luto por eles como se a minha vida e a dos meus filhos dependessem deles, mas se não ganhar não perco um segundo a chatear-me com isso." Talvez por ele ser também de ímpetos - ou "decisões provisoriamente definitivas", como daquela vez em que decidiu que ia jogar golfe, comprou todo o material e jogou uma única vez. Justifica-se com o facto de não ser "um tipo de hobbies" e detestar desporto - exceto esqui, que pratica desde os 6 anos. "Do que gosto mesmo é de viajar e conversar, de estar com amigos, com os meus filhos. E humor é fundamental."

Mas aquilo que verdadeiramente o move é mesmo a arquitetura. E é por isso que quer fazer parte da "mudança extraordinária" a que se assiste em Lisboa, também graças ao turismo e à valorização de que a cidade tem beneficiado. Conta-me que o seu gabinete ganhou, já neste ano, um resort na ilha do Pico - onde o pai nasceu - e um edifício na Duque de Loulé. "Coisas totalmente diferentes daquilo que fazemos em África e acho que vencemos pelo realismo com que pensámos o projeto: é um prédio de habitação em Lisboa não o museu de arte contemporânea na Quinta Avenida. Se pensássemos na cidade como olhamos para um projeto africano, Lisboa estava pejada de edifícios como a sede da EDP - que é lindo mas não podemos ter a cidade cheia de prédios assim. A arquitetura não é andar aos gritos."

Já com os segundos cafés na mesa e o encontro a chegar ao fim, a conversa regressa às imensas diferenças entre trabalhar aqui e em África. E existem, obviamente, por dificuldades - "tirando o hotel temporário no Senegal, demorei cinco anos até conseguir ter a primeira obra em construção..." -, mas também há muitas compensações. "Os africanos têm uma inteligência diferente da nossa. Nós temos um sonho, tentamos encaixá-lo num Excel e no fim sobra uma varanda. Eles têm a inteligência associada ao sonho. É preciso gerir isso, porque às vezes pedem coisas estapafúrdias, mas se é algo que eu não posso cumprir, só tenho de lhes pôr outro sonho à frente. E isso é um desafio giríssimo, mas que passa por uma grande honestidade, por respeitar os tempos e ser muito sério. Eu consigo mostrar um 3D extraordinário e depois chego ao local e só faço uma coisa parecida - que é o que fazem muitos arquitetos ali -, mas isso seria desonesto, desrespeitador. Eu complico a minha vida, mas no fim de contas ando de sonho em sonho. O que é extraordinário para um arquiteto."

Delfina-Cantina Portuguesa

Água

Vinho branco Planalto

Filetes de peixe-galo com arroz de tomate malandro e salada de agrião e limão

4 cafés

Total: 63 euros

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