"Estranham o pai-nosso não ser igual ao da missa"

O primeiro dos seis volumes da Bíblia traduzida do grego por Frederico Lourenço chega às livrarias sexta-feira.
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A Bíblia é quase como o romance Ulisses de James Joyce, um livro muito vendido mas nem sempre lido. Uma situação que pode mudar em Portugal nos próximos anos devido à nova tradução dos Evangelhos a partir do grego por Frederico Lourenço, a edição mais completa até hoje feita no nosso país.

O tradutor é conhecido pelas suas versões também a partir do grego de Homero, A Ilíada e a Odisseia, a que sucederam edições de ambas as obras para os leitores mais novos, mas a notícia desta empreitada de seis volumes com os 80 evangelhos surpreendeu.

Nesta entrevista clarifica o que será a "sua" Bíblia e adianta as reações que poderão existir na sociedade portuguesa. Garante que ocupar-se desta tarefa ao longo de mais de seis anos da sua vida, estes não são perdidos: "Pelo contrário, são anos ganhos. Cada ano a traduzir a Bíblia vale por uma década." Quanto a alterações na sua vida pessoal também lhes nega importância: "A dedicação ao estudo é o sentido da minha vida. Sempre foi."

O ensaísta e tradutor nega uma preferência entre o Antigo ou o Novo Testamento porque tem "paixão igual por ambos", mas considera que ao ler os originais sentiu "cada vez mais que Deus é inexprimível." Avisa que o facto de ter deixado de ser um católico praticante há uns anos não prejudica a tradução: "Confirmo a minha crença em Deus, confirmo a minha identidade como "seguidor" do judeu chamado Jesus de Nazaré, mas confirmo também a necessidade de independência da religião formal."

A empresa em que está envolvido, a que os leitores terão acesso a partir de sexta-feira, teve início em em 1984, quando compra um Novo Testamento em grego na Feira do Livro de Lisboa. Recorda: "Tudo começou aí: com a compra de um livro que eu não conseguia ler e que, trinta anos depois, traduzi."

Leio na sua biografia no primeiro volume o seu percurso: ficcionista, ensaísta, poeta e tradutor. São credenciais para convencer os católicos a ler a "sua" Bíblia?

Não tinha pensado nisso! Mas pensando agora até faz todo o sentido. A Bíblia é um repositório de narrativas belíssimas e bem contadas, contém poesia sublime e está cheia de momentos que podemos considerar ensaísticos: basta pensar no mais extraordinário de todos os ensaios, que é o livro de Eclesiastes.

É uma leitura para católicos ou esta versão irá alargar o espectro de leitores?

Fiz o trabalho para leitores de todas as proveniências e convicções. Os comentários que faço ao texto e as introduções a cada livro estão pensados para ser úteis quer a pessoas que se interessam pela Bíblia como grande monumento da cultura, quer a pessoas que têm uma ligação íntima com as duas religiões que estão implicadas nesta grande biblioteca de livros. Sim, porque uma questão que me pareceu logo à partida importante em relação à secção que denominamos, em contexto cristão, "Antigo Testamento" foi salvaguardar, em termos históricos, o valor desses livros enquanto Escritura judaica. Mas a minha intenção é dar a ler uma Bíblia neutra em termos confessionais. Não é uma Bíblia especificamente para católicos nem para protestantes nem para ateus, embora esteja convicto de que todos encontrarão na minha abordagem qualquer porta de entrada que lhes estimule a curiosidade em saber mais sobre o texto em si.

É esse o seu objetivo?

É disso que se trata neste projeto: focar as atenções no texto propriamente dito, nas palavras que dão corpo a esse texto. Não é tanto uma Bíblia para fins teológicos (mas acho que haverá aspetos que interessarão a estudantes de Teologia), antes uma Bíblia para quem quer ver as palavras da Bíblia à lupa.

Que género de desígnio espiritual é para si esta imensa tradução?

Tenho pensado muitas vezes como a Bíblia nos enriquece espiritualmente de formas tantas vezes inesperadas, pois é um livro que dá respostas, se bem que dê origem a ainda mais perguntas na nossa relação com Deus. Parece-me cada vez mais que a leitura da Bíblia é um processo interativo no diálogo com Deus. Há momentos em se tem a sensação de não sermos só nós a dirigir perguntas a Deus. Ele também nos devolve uma série delas.

A Bíblia em um único volume está desvirtuada?

Não diria isso. Vemos pelos manuscritos mais antigos da Bíblia completa (um deles está no Museu Britânico de Londres e o outro está na Biblioteca Vaticana) que já no século IV se produziam volumes contendo o Antigo e o Novo Testamentos. Mas também temos milhares de manuscritos do Novo Testamento feitos antes da invenção da imprensa no século XV, em que os livros estão separados por volumes. Normalmente, os quatro Evangelhos formam um só volume. A vantagem de dar a ler a Bíblia em seis volumes é que permite mais aparato de notas e comentários. Também permite maior concentração dos leitores naqueles textos específicos. Muitas pessoas confrontadas com a Bíblia num só volume não sabem por onde começar. A nova Bíblia da Quetzal propõe um itinerário de leitura.

Como foi o trabalho preparatório de escolha dos vários volumes? Partiu de um consenso já existente ou fez uma escolha própria?

Parti de um consenso em termos do entendimento da Bíblia segundo parâmetros cristãos. Por isso dividi o Antigo Testamento em quatro volumes. Se estivesse a fazer uma tradução do texto hebraico, essa divisão seria em três volumes: Lei, Profetas e Escritos. Mas o próprio facto de a Bíblia Grega conter o Novo Testamento leva à partida a que o conceito seja cristão.

Qual tem sido a reação da Igreja portuguesa a esta sua tradução?

A maior parte das pessoas ainda não leu! No círculo mais próximo de padres católicos meus amigos a quem ofereci o livro, a reação tem sido positiva. A Igreja Católica não tem nada a temer com a tradução portuguesa da Bíblia Grega feita sob perspetiva histórica, não-confessional. O mesmo não direi de algumas denominações fundamentalistas em contexto protestante.

E da sociedade civil?

Alguém já me disse que estranhou o facto de o pai-nosso que leu na minha tradução não ser igual ao pai--nosso que se diz na missa. Eu respondi que existem duas versões do pai-nosso no Novo Testamento, a de Mateus e a de Lucas: ambas são diferentes uma da outra e nenhuma delas corresponde ao que se diz na missa. É por isso que os católicos têm tanto a ganhar em conhecer a fundo o Novo Testamento. Regressar à origem, à fonte.

Como é que o leitor pode entender as diferenças entre, por exemplo, o Antigo Testamento grego ter 53 livros e o católico 46?

Os sete livros "a mais" que encontramos no Antigo Testamento grego resultam de dois fatores: livros mesmo originais (como é o caso do terceiro e do quarto livro dos Macabeus ou dos Salmos de Salomão) e livros que resultam de uma reorganização diferente de livros existentes no Antigo Testamento do cânone católico.

Disse que será a Bíblia mais completa em português. Como se justifica a inexistência da versão total?

A história da tradução da Bíblia em Portugal é muito curiosa e está muito bem estudada pelo frei Herculano Alves em várias publicações. Temos de pensar que somos um país que foi dominado pela Inquisição, que desincentivou ao máximo a leitura da Bíblia, ao contrário do que acontecia nos países protestantes. Foi só no final do século XVIII que finalmente saiu em Portugal uma tradução completa da Bíblia em português, feita pelo padre António Pereira de Figueiredo a partir da versão latina da Vulgata, a única que tinha autoridade teológica no catolicismo. Antes do padre Figueiredo, tinha sido feita a célebre tradução de João Ferreira de Almeida, mas ele fê--la fora de Portugal e, por obedecer a uma conceção protestante, estava proibida de circular no nosso país. Quando a partir de 1943 o papa Pio XII começou a estimular a feitura de traduções para católicos a partir do hebraico e do grego, afigurou-se naturalmente mais prioritário traduzir o Antigo Testamento hebraico. A versão grega do Antigo Testamento acabou por ficar esquecida. Mas é importante sublinhar que, para os judeus que a elaboraram nos séculos III-I antes de Cristo e para os cristãos que a receberam como Escritura Sagrada nos primeiros séculos do cristianismo, a versão grega tinha uma autoridade equivalente à da versão hebraica.

Como foi lidar com o significado diferente daquele que tem sido convencionado para certas palavras nas Bíblias publicadas?

À partida pareceu-me evidente que o meu posicionamento fora do contexto eclesiástico me dava liberdade para explorar sentidos mais exatos das palavras do Novo Testamento, mesmo que daí resulte um texto diferente daquele que se ouve na missa. Uma questão para mim alarmante na metodologia atual de tradução do Novo Testamento é a obsessão por facilitar o texto, de modo a torná-lo acessível. O problema é que muitos livros do Novo Testamento, sobretudo as cartas de São Paulo, não estão redigidos de forma fácil nem acessível. São textos dotados de extraordinária complexidade, muito difíceis de ler. Às vezes pasmo com as traduções de São Paulo que se fazem por esse mundo fora, que dão uma imagem totalmente distorcida do texto do apóstolo. Quem consegue ler São Paulo em grego sabe que o texto é denso, complexo e muitas vezes obscuro. A minha tradução respeita o caráter de cada livro do Novo Testamento e não nivela todos pelo diapasão do facilitismo. Dou a ler o São Paulo real, como ele é. E garanto que é uma leitura desafiante, mas ao mesmo tempo compensadora. Se me dessem a ler uma tradução "facilitada" das Elegias de Duíno de Rilke, consideraria uma menorização do leitor. Porque é que os leitores de língua portuguesa não hão de ter a oportunidade de se confrontarem com o texto real do Novo Testamento? Penso que é o momento de o fazerem.

Esta tradução poderá levar em Portugal a novos estudos sobre o judaísmo e o cristianismo?

As minhas notas e comentários são de cariz histórico e linguístico e penso que aí reside um campo que poderá ser desenvolvido em Portugal no estudo da Bíblia. Um aspeto muito importante é perceber quão difícil é ver a Bíblia como a palavra imutável de Deus, porque existem tantos manuscritos e todos eles nos dão a ler um texto com pequenas (por vezes grandes) diferenças. Aplicar o pensamento crítico ao estudo da história do judaísmo e do cristianismo continua a ser tarefa prioritária. Direi o mesmo em relação à compreensão histórica da feitura da Bíblia, com os seus 80 livros (na versão grega) compostos ao longo de vários séculos, em contextos autorais e geográficos diferentes. Foi um pouco assustador ver alguns candidatos presidenciais à eleição nos EUA afirmar em 2016 que Deus criou o mundo em seis dias e que a Terra tem 6000 anos, só porque esse é o cômputo da Bíblia, que é a Palavra de Deus e, por conseguinte, infalível. Mas a Bíblia levanta perguntas incómodas para a história do judaísmo, como se vê logo na questão de hoje haver historiadores e arqueólogos em Israel que afirmam a impossibilidade histórica do Êxodo e da própria escravidão dos judeus no Egito. Que choca muitos judeus hoje.

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