"Apaguei-me durante 24 horas. Mais do que ver imagens, eu vivi dentro delas"
Cartonista, autor de banda desenhada, designer de teatro, ilustrador, António Jorge Gonçalves lança dois livros nos próximos dias: a novela gráfica A Minha Casa Não Tem Dentro e, com Ondjaki, O Convidador de Pirilampos
Vai ser lançado na próxima semana o livro A Minha Casa Não Tem Dentro. Por que é que a sua casa não tem dentro?
Essa pergunta à queima-roupa, para começo de conversa... O nome vem de uma estiga que me foi contada pelo Ondjaki.
Vai explicar o que é uma estiga?
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Eu também não sabia o que era uma estiga até o Ondjaki me ter explicado.
O Herlander Rui, o nosso sonoplasta, também não sabe.
E ele merece saber. A estiga é uma forma de provocação, um desafio verbal praticado entre as crianças na rua em Luanda. Estigar é uma forma de chatear, é uma provocação, tende a insultar alguém de uma forma mais pesada ou mais leve. O Ondjaki, numa apresentação em Luanda sobre as estigas (ele fez o trabalho de mestrado sobre isso), passou uma série de gravações e uma delas era "tua casa não tem dentro". Aquilo bateu-me que nem uma seta no coração e disse-lhe logo que queria usá-lo para nome de um livro. Respondeu: "tudo bem, desde que digas de onde vem".
E está escrito no livro, neste livro da Abysmo cujo lançamento é no dia 16 de fevereiro na sede da editora, com a inauguração de uma exposição.
A exposição dos desenhos do livro, que é uma novela gráfica. Não sei bem explicar essa ideia do "não ter dentro" mas acho que o título vai bem com o livro. Há um espaço muito grande a preencher nesse livro pelo leitor. Esta frase é uma aparente contradição, porque se há espaço que nós dizemos que é cheio por natureza é a casa.
É um dentro?
É o lar, é um dentro. Isto tem qualquer coisa um pouco estranha mas que nos provoca uma onda emocional. É uma imagem definitiva e evocativa de qualquer coisa dentro de nós. Uns irão falar de um vazio interior, outros irão falar da viagem e do sedentarismo ou do nomadismo. Neste caso, é uma novela autobiográfica.
Eu tinha associado A Minha Casa Não Tem Dentro com o facto de o António Jorge ter tido um episódio de saúde, ou de doença, muito grave.
Fui internado há um ano no Hospital de S. José, de um momento para o outro, com uma anemia enorme e levou um bocado de tempo até se perceber o que se passava. Não é exatamente uma raridade estatística mas não acontece a muita gente, é uma coisa chamada Lesão de Dieulafoy, o nome de um senhor francês [o cirurgião Paul Georges Dieulafoy, 1830-1911]. Consiste na existência de uma veia defeituosa que rompe a parede do estômago, entra em contacto com os ácidos, abre, entra em geiser, em jorro, e em muito pouco tempo pode perder-se muito sangue. Eu perdi metade do meu sangue.
Metade?!
Houve tentativas endoscópicas de resolver o problema, não resolveram e eu apaguei-me durante 24 horas. Fui admitido à mesa de cirurgia com hemoglobina a 3, o que basicamente é um valor em que estamos mortos, porque já não é possível ao sangue carregar oxigénio para as células do corpo. Operaram-me e eu estou cá para contar a história.
Esteve em coma?
Estive apagado, há 24 horas em que não sei o que aconteceu.
Lembra-se de alguma coisa?
Lembro-me do antes e lembro-me do depois. Nesse antes e nesse depois há uma série de coisas relacionadas com a experiência da hospitalização. Até passarmos por uma experiência desse tipo de gravidade, com tubos enfiados nos orifícios, a perder completamente a jurisdição do nosso corpo, a ser preciso alguém até para nos voltar, é muito difícil imaginarmos o que é essa experiência, como a sentimos. Habitualmente tenho muitos episódios do que se chama sonhar acordado, ou de uma perceção de imagética e sensorial estando acordado, daquilo a que normalmente chamamos sonhos, realidades paralelas, uma outra forma de olharmos para as coisas, coisas que vemos e aparentemente não estão lá mas estão. Isso foi extremamente intensificado durante essa experiência.
Continuava a ver imagens?
Sim. Depois da cirurgia houve uma altura em que pedi o apoio da psiquiatria para tentar perceber se havia mais qualquer coisa. Até pensei que pudesse ser da medicação. Há um choque tão grande no organismo que, numa pessoa como eu que esteja familiarizada com a imagem, ainda gera mais. Para ser honesto, mais do que vi imagens, eu vivi dentro de uma série de imagens e de coisas, algumas não compreendi, muitas não digeri. Nas três semanas em que estive hospitalizado, nas minhas muitas noites de insónias continuei a escrever e a desenhar quando conseguia. Tinha este pensamento fixo que era - eu queria poder sair do hospital, safar-me daquela coisa e quando me pudesse sentar à mesa a desenhar e pintar era isso que eu queria fazer.
Estes desenhos são os que fez no hospital?
Não. Eu também não desenhei tanto no hospital. Apontei algumas coisas. Desses desenhos que aí estão, alguns que são uma transposição de coisas que eu vi ou que vivi. Há outras que quando comecei a desenhar evoluíram para outras coisas. Não é um livro autobiográfico naturalista, não faz uma narração de um episódio de saúde ou do que me aconteceu.
Embora esteja aqui uma ambulância do INEM. Foi levado por uma ambulância?
Exatamente, fui levado por uma ambulância para o Hospital de S. José.
Aliás, no livro elogia o trabalho que ali foi feito.
Com certeza. Estou cá porque existe o Serviço Nacional de Saúde e porque aquelas pessoas têm experiência. O cirurgião que me operou, Novo de Matos, estava de serviço naquela noite em que eu me apaguei, e tinha operado um caso destes há 20 ou 30 anos, numa altura em que fazia imensas cirurgias por dia. Se imaginarmos os milhares, talvez milhões de cirurgias que este homem fez... Ainda bem que ele estava lá, porque sabia como fazer. Isso é um outro lado que nós esquecemos, felizmente não faz parte da nossa vivência, mas é um trabalho incrível que estas pessoas fazem.
Ao longo do livro A Minha Casa Não Tem Dentro aparece uma menina. Imaginei que era a sua filha, que ela esteve sempre presente na sua situação crítica. Estou a fazer uma extrapolação ou foi assim?
Claro que esteve. Descobri agora, que comecei a ter de falar sobre o livro, que não me é particularmente fácil fazê-lo, principalmente de uma maneira honesta como gostava que fosse. Muitas vezes nós, autores, inventamos um discurso acerca do que fazemos e depois vamos repetindo. Não me apetece inventar discurso nenhum para falar deste livro, porque o que posso dizer é que tudo o que aí está é muito honesto. Honesto no sentido em que eu tinha acabado de passar por uma situação difícil, sentei-me e com imensa paz pus-me a fazer estes desenhos e não censurei nada do que vinha, deixei vir tudo o que vinha. E apareceu esta rapariga. De início pensei que era a minha filha. Lá mais para a frente, percebi que não era ela, mas também não gostaria de avançar muito mais acerca desta personagem, porque há muitas coisas que eu não percebo no livro. O livro não é abstrato, é todo figurativo e normalmente é bastante específico naquilo que desenha. Mas a verdade é que há coisas que eu não entendo verdadeiramente. Vou navegando, porque elas vão aparecendo e eu as vou seguindo, e sei que fazem sentido, mas não é imediato ou não é completamente consciente, se calhar vem mais do nível do inconsciente ou outra coisa qualquer. Essa personagem dela aparece como aparecem outras coisas. Se para mim algum sentido fez eu levar este livro ao João Paulo Cotrim da Abysmo e perguntar se estava interessado em publicar, é porque, apesar de ter sido um ato tão pessoal, eu sinto-me compelido a pôr no mar esta garrafa com uma mensagem lá dentro. Estou curioso de saber o que as pessoas veem nos desenhos, que reverberação é que isso tem para elas.
No fim do livro fala de ir ao jardim com a filha. É como se fosse o regresso à normalidade: "ela queria ir ao parque das crianças e eu fui com ela".
Sem querer explicar demasiado, há talvez outra coisa ligada a essa história dela, especificamente da minha filha, e do ir ao jardim e do voltar. As crianças pequenas, como forma de apreensão do mundo, repetem muito as coisas e têm um prazer imenso em revisitar, sabendo que não é a primeira vez que fazem, que é uma nova vez. Há qualquer coisa de simples mas extremamente gratificante nisso. Muito mesmo.
Todos os pais sabem que têm de contar a mesma história sucessivamente, e da mesma maneira.
Se bem que nunca é, porque o momento que está a ser vivido é um outro. E como o momento é outro, nunca pode ser da mesma maneira.
Tem trabalhado muito em colaboração com escritores. Não é apenas fazer a ilustração de um livro.
São co-criações.
E nomeadamente com o Ondjaki. Tem um livro em preparação na Editorial Caminho que será lançado no dia 4 de março. Como se chama?
O Convidador de Pirilampos.
É um título que é muito Ondjaki.
Quando li à minha filha, ela perguntou-me: convidador? O que é isso?
E o que é?
Não vou explicar o livro, ainda mais na ausência do Ondjaki. Acho que os títulos também são bons precisamente quando abrem uma porta para uma coisa que é desconhecida.
Vão fazer sessões, como fizeram com Uma Escuridão Bonita?
Um momento performativo? Não pensámos nisso.
Assisti a uma performance de Uma Escuridão Bonita. O Ondjaki contava a história e o António Jorge ia fazendo desenhos.
O Ondjaki escrevia e tinha as palavras dele projetadas. Escrevia, corrigia e alterava ao vivo, e eu desenhava ao vivo, as duas coisas sobrepostas.
E isso aparecia projetado na parede. O Ondjaki não estava a criar ali a história?
De raiz não. Eu andava a desafiar o Ondjaki há muito tempo, era uma coisa que queria fazer com escritores e o Ondjaki foi o único, dos muitos com quem tenho trabalhado, que realmente se chegou à frente e aceitou. A coragem de escrever em direto não é para estômagos sensíveis, eu percebo, porque um escritor tem aquele labor da correção e do trabalho em cima de. Depois fizemos mais, juntámos o Marcelo Madaleno no Rio de Janeiro e em Luanda, um músico brasileiro. Em Lisboa fizemos O Telhado do Mundo com o pianista Filipe Raposo. Chegámos a um ponto de quase improvisação completa, os três, a criação ali em simultâneo.
E isso é filmado, guardam imagens?
Não filmamos nada. Alimenta-me muito - não vou falar por eles, não sei o que eles acham - o caráter único daquele ato. Há uma diferença grande entre desenhar no meu caderno ou desenhar qualquer coisa que vai ser publicada. Parece que me ponho muito mais em sentido. No caderno, existe a liberdade de fazer errado, de fazer mal, de fazer boçal, naquele sítio onde não vai acontecer nada. Se eu soubesse que aquilo estava a ser gravado era como os músicos a gravar o dvd da tour que já estiveram a treinar ao espelho as poses, sabem que aquilo vai ficar gravado. Há qualquer coisa de muito libertador em deixar ir e de saber que aquilo só vai viver naquele momento para nós e para as pessoas que estão ali, e na memória desse momento.
Como espectadora, eu queria que ficasse gravado porque estava a ser tão maravilhoso.
Isso é um dos stresses contemporâneos, como quando se vê a quantidade de pessoas que estão nos concertos a registar, a ânsia... Às vezes dá a sensação de que substituem a fruição presencial pela experiência da gravação. Privilegiam ter o registo para depois poderem olhar, em vez de viverem o momento por completo.
Felizmente no teatro isso não acontece, as pessoas não se põem a filmar. Mas nos concertos é aflitivo.
É uma opção. Eu não sou muito moral em relação a isso. Nas minhas viagens eu fotografava muito e um dia deixei de fotografar porque percebi: ou viajas ou fruis a viagem. Quando uma pessoa fotografa compulsivamente é como um caçador que depois traz o espólio para casa. Está a privilegiar o momento de depois e não aquele momento.
E acaba por não estar inteiramente ali.
Com certeza, porque ver através de uma câmara não é a mesma coisa de estar a aproveitar o momento.
Há um outro livro seu que se encontra no seu site, o Subway Life. Desenhou pessoas dentro do metropolitano em dez cidades do mundo. É o oposto da situação de A Minha Casa Não Tem Dentro, em que está virado para dentro. No Subway Life está virado para as pessoas que está a ver.
A Ana é que está a atribuir essa noção de estar virado para dentro ou para fora, não sei se me revejo nisso. Sinto os dois livros como pontos-charneira. O Subway Life foi um momento-charneira em que vivi em Londres, acompanhou esse período e o meu regresso. Foi também quando comecei a fazer desenho digital e performances. Houve uma saída do estúdio, do trabalho de papel, que é muito individualista e esse projeto trabalhou essa abertura ao mundo, esse fazer com. Este novo livro e a minha experiência no hospital vêm marcar uma sintonia - isto é muito difícil dizer sem soar a uma caricatura new age -, uma ligação mais universal ou mais de conjunto. Apesar de a experiência ser extremamente pessoal, as águas em que ando a navegar e em que o livro navega têm a ver com coisas comuns que nos cosem a todos, um bocadinho mais existencialistas mas num sentido mais expandido. O Subway Life pode ter para cada pessoa as reverberações que quiser mas não deixa de ser apenas estar fisicamente junto com aquelas pessoas dentro daquele metro.
As pessoas aceitavam que as desenhasse? Havia muitas diferenças na atitude das pessoas de cidade para cidade?
Havia muitas diferenças. Grande parte do interesse era a variedade das diferenças. Há uma contenção muito grande na reação dentro do Metro, num espaço que é pressentido como perigoso. Estamos fechados, a confiança que é dada ao próximo é mínima. Havia pessoas que não ficavam confortáveis, mas só raramente se manifestaram. Berlim foi dos primeiros sítios onde tive de fazer um braço-de-ferro. Quando os berlinenses percebiam que estava a desenhar ficavam a olhar-me olhos nos olhos, era um braço-de-ferro emocional muito forte. Como se me dissessem: vê lá se aguentas o meu olhar.
E aguentava?
Eu aguentava aquilo e quando viam que eu aguentava então relaxavam e deixavam-se estar. Havia muitas formas não verbais de eles traduzirem essa atitude.
E em Lisboa?
Lisboa para mim foi o sítio mais difícil de desenhar.
Porquê?
Escolhi cidades que não conhecia, e o projeto vivia muito do meu desconhecimento do que eram aquelas pessoas. Olhava para as pessoas e então, em cidades como Moscovo ou o Cairo, não poderia adivinhar se trabalhavam numa loja, se eram professores universitários, se moravam num bairro de lata. Eu não tinha dados culturais para decifrar os sinais exteriores. Em Lisboa trago isso tudo às costas. Olho para qualquer pessoa e imediatamente se interpõe uma ideia preconcebida. E isso criava um frisson, tornava-me menos livre.
E Nova Iorque, por exemplo?
Nova Iorque era um sítio muito fácil, talvez dos mais fáceis, porque há uma informalidade muito grande e Nova Iorque é uma Disneylândia de artistas. Ser-se artista em Nova Iorque é ser um animal comum, não é nada de extraordinário.
Qual foi o sítio que gostou mais de desenhar?
Essas viagens não estão dissociadas da minha experiência do meu momento de vida e da minha experiência diante de cada uma. Foi a primeira vez que fui a Tóquio. É uma cidade de comboios, muitas estações têm acoplados centros comerciais subterrâneos. Há uma vida subterrânea em Tóquio e as pessoas usam-na muitíssimo. Podemos ver a cidade no metro, e eu gostava muito disso. Talvez a única que foi difícil foi Estocolmo.
Porquê?
A bolha da privacidade era muita óbvia e muito grossa. A maneira de as pessoas me manifestarem desagrado não era confrontarem-me, era levantarem-se e irem para outro lugar. Nem me diziam nada. Eu sentia um desagrado que vinha de eu estar a quebrar uma regra implícita daquela sociedade: ninguém olha olhos nos olhos prolongadamente para alguém que não conhece. Isso é uma invasão da esfera privada. Isso desmoralizava-me um pouco, estar a fazer qualquer coisa que ninguém queria que eu fizesse.
Esse é o projeto Subway Life.
É um livro, um site e uma exposição itinerante que de vez em quando aparece aí nuns quantos sítios, com uma seleção desses desenhos, ampliados à escala das pessoas.
Continua a andar com um caderno?
Eu tenho sempre cadernos e desenho muito no metro. Por exemplo, os meus cartoons políticos d" O Inimigo Público resolvo-os muitas vezes nas carruagens do metro.
Porque está a ouvir conversas ou porque é um momento em que está sem fazer outra coisa?
Porque gosto muito, o metro é um sítio onde me sinto em casa. Sente-se a cidade, o movimento, o passa, entra, sai, está. E há a própria geografia do metro, ao contrário dos autocarros que nos viram todos para alguém como se a estrada fosse um ecrã de cinema. No metro estamos todos virados uns para os outros e muito próximos. Gosto de sentir essa proximidade, inspira-me, aquece-me.
No próximo fim-de-semana tem no Centro Cultural de Belém...
... espetáculo Qual É o Som da Tua Cara?, com o pianista Filipe Raposo.
Como é esse espetáculo?
Nós fizemos uma série de três oficinas com crianças para explorar com elas a relação entre linguagem visual, ou imagem, e som. É isso que o Filipe Raposo e eu fazemos quando trabalhamos juntos com improvisação. Fazemos um concerto para desenhos e piano. Vamos trabalhar com uma seleção de desenhos de caras produzidos nessas oficinas em que exploraram o autorretrato e o retrato dos outros. É um trabalho muito particular com as crianças. Só despertei para o trabalho com as crianças com o nascimento da minha filha.
Que tem agora quantos anos?
Tem oito anos. Antes, as crianças pareciam-me uma espécie de extraterrestres que falavam outra língua que eu não dominava, tinham outro código. Com ela, passei a conhecer esse código.
O código dela?
O código dela, mas depois comecei a conhecer os amigos dela e a olhar para as outras crianças da idade dela de uma outra forma. O mais impressionante é que a representação plástica surge muito cedo nas crianças. Nós com uma criança pequena podemos ver a pré-história do aparecimento do desenho. A espontaneidade e a assertividade com que eles desenham são muito diferentes das dos adultos.
Porquê?
Porque eles não pensam, não têm grandes expectativas - vou ver se consigo fazer isto... Até podem tentar fazer mas se não conseguirem na primeira infância isso não é um problema. Depois tornam-se mais críticos. Partem sem medos para o papel e a representação, sem dar grande importância. Nós somos muito pomposos acerca do que fazemos, investimos uma importância simbólica, levamo-nos terrivelmente a sério. Eles não.
O que é que uma pessoa que queira levar lá uma criança pode esperar?
Pode esperar uma série de caras com os respetivos sons. Eu e o Filipe vamos navegar de uma maneira muito solta e imprevisível, porque o nosso registo é o improviso. Cada momento será único na sua dinâmica. É uma coisa que me agrada muito no trabalho digital e no trabalho com o Filipe, que é uma pessoa com quem já construí um grande grau de cumplicidade. E é muito interessante estar o tempo todo a explorar esse diálogo que às vezes é uníssono, ou seja, estamos a contar a mesma coisa, e às vezes é um diálogo divergente. Às vezes um de nós tira o tapete ao outro e puxa-o para outro território. E isso é vivido naquele momento tanto por nós como por quem lá está a assistir.
Há também no seu trabalho, e creio que mais no início, a banda desenhada. Fez vários livros com o Nuno Artur Silva.
E com o Rui Zink também. Foram os meus dois grandes parceiros.
Deixou a banda desenhada?
Não, eu inscrevo A minha casa não tem dentro como banda desenhada. Do ponto de vista formal, procuro fazer a minha banda desenhada em versão 3.0, ou seja, o percurso de tudo o que já experimentei está dentro dessa linguagem. Mas essa é a minha linguagem matriz, ela aí está e qualquer pessoa que colabore comigo vê sempre isso. Isso está muito patente. Foi uma coisa que comecei a fazer desde muito pequeno. Fiz a minha primeira banda desenhada quando tinha quatro anos, é o nascimento de uma zebra.
Ainda tem esse desenho?
Ainda tenho, é uma página A4 com vários quadrados horizontais, devo ter visto na televisão. Esse instinto de sequenciar imagens para contar qualquer coisa é o que sempre lá esteve. Acredito que a nossa forma de contar histórias, em qualquer suporte, continua a ser essa. Uma sinfonia tem vários andamentos, um filme tem vários planos, a própria maneira como nós narramos uma coisa que nos aconteceu é: eu estava a fazer isto e aquilo e de repente - mudámos de quadro - aconteceu tal. Nós também contamos a coisa em quadros, de alguma maneira. A banda desenhada está sempre lá. Já deixei há algum tempo a banda desenhada enquanto código mais reconhecível, ou tornou-se menos óbvio.
Os quadradinhos?
Sim, os quadradinhos, os balões, um determinado tipo de história, um determinado tipo de narrativa de conduzir o leitor, um certo cânone. Mas ela está lá.