Com "Alma Viva", Cristèle Alves Meira volta às raízes portuguesas
Os filmes de Cristèle Alves Meira nascem de dois peculiares paradoxos: por um lado, depois da sua formação e prática teatral, foi o cinema que se impôs como meio ideal de expressão pessoal; por outro lado, embora nascida em França, há nela o cada vez mais forte impulso de regressar às histórias e paisagens de Trás-os-Montes, isto é, às suas raízes familiares.
Eis um breve autorretrato: "Sinto o complexo de alguém que não tem um só país. Nasci em França, filha de pais portugueses, do Norte do país. Tenho dupla nacionalidade, já que pedi a nacionalidade francesa aos 18 anos. Sinto-me francesa, é verdade, mas em casa sempre recebi uma cultura portuguesa. Ao mesmo tempo, quando venho a Portugal, é como se não me sentisse portuguesa: vivo uma espécie de crise identitária que traz as memórias dos tempos de infância que passei com a minha família transmontana."
Em termos práticos, Cristèle sempre manteve uma relação regular com Trás-os-Montes, em particular para passar as férias de verão. As suas duas curtas-metragens de ficção - Sol Branco (2015) e Campo de Víboras (2016) - refletem tais vivências, mas não são meros registos documentais. Há mesmo nelas uma particular sensibilidade a toda uma herança narrativa: "Estou dentro daquilo tudo e também estou fora. Ao fazer estes filmes, tenho um olhar exterior mas, ao mesmo tempo, as minhas personagens são inspiradas em muitas histórias que ouvi, contadas sobretudo pelas minhas tias."
Podemos, então, falar de realismo mágico? "Não gosto muito da expressão. O certo é que há em mim essa vontade de filmar as pessoas de uma forma quase naturalista, embora explorando temas de inspiração mágica, lendas com uma dimensão metafísica."
Curiosamente, para além dessa relação com as memórias de Trás-os-Montes, Cristèle não aponta raízes cinematográficas ao seu trabalho, reconhecendo mesmo que, durante muito tempo, não foi uma "cinéfila". De alguma maneira, foi o teatro que a conduziu ao cinema: "Estudei artes do espetáculo e no momento em que era preciso escolher entre teatro e cinema, escolhi teatro. Entretanto, todos os anos, quando voltava a Portugal, trazia a minha câmara e filmava a família. Comecei a ficar um pouco cansada do teatro e a sentir a necessidade de falar daquela região - percebi que era o cinema que me iria permitir contar as minhas histórias."
Mas não houve um momento decisivo de descoberta do cinema? "Sim, o primeiro choque de cinema foi o filme Opening Night, de John Cassavetes."
O visível e o invisível
Sol Branco só recentemente foi revelado no continente (tinha tido uma exibição pública na Madeira), juntamente com Campo de Víboras, numa sessão promovida pelo departamento de Ovar do circuito internacional Shortcutz, coordenado por Tiago Alves e Ana Vila Real. Entretanto, Campo de Víboras, que passou na Semana da Crítica de Cannes e valeu à realizadora um prémio de revelação na edição do IndieLisboa de 2016, poderá ser lançado nas salas portuguesas, nos próximos meses, como complemento de uma longa-metragem.
Depois de um processo de casting na procura de jovens intérpretes, Cristèle trabalha agora em Alma Viva, precisamente a sua primeira longa-metragem. E reconhece que o filme não deixará de prolongar obsessões dos títulos anteriores: "É uma fascinação um bocadinho arcaica. Por exemplo, em Campo de Víboras, a questão era de saber se é o destino que nos conduz ou se somos nós que fazemos o destino. Creio que essa pergunta se vai repetir na longa: naquilo que somos e fazemos, será que exercemos um livre arbítrio ou há uma dimensão metafísica que nos transporta? Mais ainda: será que isso é um elemento da própria identidade portuguesa?"
Sendo o cinema, por definição, uma arte do visível, como mostrar todas essas forças que parecem surgir do domínio do invisível? "Esse é o grande desafio que enfrento com Alma Viva. Há poucos meses, como que tive a intuição de que o cinema é a arte da encarnação. E perguntei-me: como é que vou fazer para mostrar essa alma viva?" Como, de facto? Cristèle responde num misto de ironia e certeza: "É segredo, não vou dizer, mas acho que já encontrei a resposta."
Que história se conta, então, em Alma Viva? Fica uma quase sinopse proposta pela realizadora: "É um filme que tenta compreender a relação com os nossos defuntos. Há um funeral, uma avó que parte... Não é exatamente um filme sobre o luto, será mais sobre a relação entre os vivos e os mortos. Há uma frase de uma personagem que resume bem aquilo que quero dizer: "Os vivos fecham os olhos aos mortos e os mortos abrem os olhos aos vivos"."