Cinema
Nos primeiros tempos, íamos ao cinema todos os fins-de-semana. Descíamos da Terra Chã, muito agasalhados sob o nevoeiro, comprávamos pipocas e Maltesers e depois íamos tomar o nosso lugar na sala.
À volta, havia rapazes do tuning, com as suas garotas-troféu, e um razoável número de adolescentes. Um gordinho tímido sentava-se na terceira fila - sempre no mesmo lugar. Mulheres na esperança de uma segunda oportunidade deixavam--se mimar pelos novos namorados, ponderando-lhes os gestos, e uns quantos solitários dispersavam-se pelos cantos da sala.
De vez em quando ocorria um bruaá. Nas lutas, chegava a haver aplausos, como no Cinema Paraíso. Se o rapaz beijava a rapariga, era o diabo - e, ao sair, a rapaziada vinha num banzé, a imitar os gestos do herói.
Estivemos uns tempos afastados, por razões várias. Na segunda-feira, voltámos. Havia moços do tuning, garotas-troféu e adolescentes. Um gordinho sentava-se na terceira fila. Solitários dispersavam-se pela sala. Mulheres e homens avaliavam segundas oportunidades.
Nas cenas excitantes, fez-se silêncio. Um barbinhas normalíssimo beijou a Keira Nightley - nenhuma indignação. Um tipo mais velho conseguiu arrastar-se até ao acampamento, pela neve - nenhum aplauso. O barbinhas morreu - nenhuma lamúria.
Continuou tudo metido consigo, porque ir ao cinema é um momento de uma pessoa estar metida consigo - e, à saída, apenas duas raparigas oxigenadas deram gritinhos, para aliviar a tensão.
Só quando nos sentámos no carro nos ocorreu que, na verdade, tinha sido sempre assim. Toda a folia dos primeiros tempos, os bruaás e os aplausos, fora produto da nossa imaginação. E, entretanto, tínhamos deixado de ver o cinema de Angra como uma experiência rural e passado a vê-lo como uma experiência urbana.
Pouco mais será tão eloquente sobre o que, nestes três anos, foi feito de nós.