Cante viajou de Beja a Sevilha para casar com o Flamenco

Cantadores do Desassossego rumo a uma missão nunca antes testada: Fundir Cante e Flamenco à boleia da apresentação do festival Terras sem Sombra que junta música, património e biodiversidade em oito concelhos do Baixo Alentejo. Já a partir de sábado e até 4 de junho.
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Na bagageira do autocarro entram três boxes de vinho tinto. Não falta pão, queijos de cabra e de ovelha, chouriços e toucinho cozido, além de azeitonas e presunto. Irão de aconchegar os estômagos lá mais para a frente.

Pneus à estrada. A atuação está marcada para as 20.00 espanholas e há ensaio geral minutos antes do concerto Imenso Sul. Ainda Beja se vê ao longe e já se ouve a primeira moda regada com uma bagaceira de ameixa que o tio de Pedro Torrão trouxe da Bósnia. "Guardem os copos de plástico que há poucos", avisa, enquanto pede aos outros 20 cantadores que olhem para trás para fazer uma selfie. "Não está grande coisa, mas vai já para o Facebook", diz. "Vamos desassossegar Sevilha", escreve na legenda, antes do autocarro sair da estrada nacional para ir buscar o último elemento a Baleizão. E lá se canta: "Ó terra Baleizoeira. Eu hei de ir morar contigo. Queira o teu pai ou não queira". Mais à frente afinam em Serpa de Guadalupe, de "poetas e pastores". Entre modas - nunca lhes chamam músicas, nem canções - com a raia à vista o olival ganha terreno pelas mãos de empresários espanhóis. Explicam que a "oliveira mais fininha é toda deles" e ainda discute o sistema de rega que não está bem feito. Há entre o grupo quem trabalhe na agricultura, mas a maioria faz vida longe de campos. São polícias, funcionários públicos, há um jornalista e um barbeiro.

"Já lá vai o tempo em que só cantava quem andava na lavoura. Nós agora até temos um holandês", diz Miguel Paiva, o manager do grupo que nasceu em 2015 impulsionado pela classificação do cante como Património Mundial. Já o nome Desassossego tem base no bar onde o grupo foi criado - Galeria do Desassossego, em Beja - e onde cantorias meio a brincar rapidamente ganharam espaço em espetáculos e festivais de Cante.

Hora da bucha faz-se na chegada a Valdeflores, já depois do autocarro debelar a serra de Aracena, de curvas e contracurvas. Entra em ação quem sabe. Uma estrutura de betão onde em tempos funcionou uma nora é quanto baste para se montar a mesa. De repente perde-se a conta aos canivetes que saltam dos bolsos, bem afiados, e avança-se para o que será o lanche antes da atuação. Em dez minutos volta-se à estrada e canta-se com mais força. O mestre Francisco Torrão explica que é importante cantar durante a viagem, porque aquece a voz e treina-se. O "E viva Espanha" que se ouve com Sevilha à vista também conta. Jorge São Pedro, um dos dois pontos do grupo, dá a entrada para mais uma moda. O repertório parece não ter fim, mas este é mais orelhudo. Diz que o "cante se ouve no céu".

Tiago Batista, com 21 anos, é o mais novo e aguenta a viagem a cantar ou a trautear música pop, enquanto Olímpio Carvoeiro ainda puxa dos galões do alto dos 79 anos, para recomendar que o chapéu da farda "se deixa cair para os olhos. Assim, à malandro", exemplifica, já depois do grupo ter ensaiado e vestido a farda, o tal traje domingueiro, usado em dias de festa pelos feitores, na primeira década do século XX. Não falta a peculiar cinta, que requer engenho para apertar, o casaco, jaqueta, camisa e calças. E nervos? Afinal, é a primeira vez que se vai ouvir cante em Sevilha. "Não há nervos. Está tudo calmo", responde Olímpio, enquanto ao mestre Francisco Torrão não palpita que os dois sons se "cosam".

Agora já é a sério. Os cantares alentejanos enchem o Consulado Português de Sevilha de vozes graves e guardam o momento alto para fim quando a sevilhana Esperanza Fernández é chamada para se juntar aos cantadores do Desassossego e da Aldeia Nova de São Bento, cruzando Cante e Flamenco. Rasgaram-se fronteiras? O mestre diz que sim, sublinhando o orgulho dos seus "rapazes", e Esperanza gostava de tentar outra vez. "Hoje foi um improviso mas foi lindo", acrescentava.

O diretor do festival, José António Falcão, também aplaudia e destacava o "passo" que representa para o Baixo Alentejo a aposta em Sevilha. "É a nossa capital anímica e quando se constituir a Eurorregião, a Andaluzia vai lá estar com Baixo Alentejo e Algarve", sublinhava, destacando o "virtuosismo" que está inerente "à ligação entre música, património e biodiversidade". Tudo isto, dizia, em nome de um Alentejo diferente "que vai buscar ao circuito internacional energias, meios e até interesses que de outro modo seria muito difícil". José António Falcão assegurava ainda que "graças à cultura conseguiram estabelecer-se contactos políticos e económicos ao mais alto nível com Sevilha".

O DN viajou a convite do Festival Terras Sem Sombra

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