Cannes sem selfies e sem Netflix
No Festival de Cannes nem sempre é muito nítida a linha que separa uma genuína polémica da mais grosseira especulação mediática. O certo é que, a poucas semanas da 71.ª edição do maior certame cinematográfico do mundo (de 8 a 19 maio), o delegado-geral, Thierry Frémaux, achou por bem dar conta de medidas suscetíveis de criar algumas tensões. A mais delicada será a que envolve a Netflix: a partir de agora, as produções com chancela da poderosa plataforma de difusão de filmes (e séries) pela internet ficam fora da secção competitiva. Além disso, Frémaux decidiu tirar consequências práticas da sua visão das selfies como uma prática "ridícula e grotesca": na passadeira vermelha, as selfies passam a estar interditas.
Dir-se-á que a proibição das selfies é um mero detalhe de protocolo, apenas suscetível de incomodar a vaidade de algumas vedetas que cumprem o ritual de percorrer os cerca de 50 metros (mais 24 degraus) que dão acesso à entrada principal do Palácio dos Festivais... Talvez, mas em entrevista a Le Film Français, principal publicação francesa dedicada ao universo industrial do cinema, o próprio Frémaux sublinhou que a medida, além de ter sido tomada em conjunto com Pierre Lescure, presidente do festival, pretende contrariar a "trivialidade e a lentidão" provocadas pela "desordem intempestiva" das selfies.
Trata-se, afinal, de cuidar (ainda) mais da perceção pública do festival. Apesar da brevidade da passagem de uma estrela, ou de uma equipa de um filme da seleção oficial, pela passadeira vermelha, essa passagem possui um valor mediático essencial através das fotografias e registos televisivos que gera. Acontece que os breves segundos de exposição na passadeira vermelha podem dar origem a mais notícias e comentários do que uma obra-prima de um autor desconhecido a passar, discretamente, numa das pequenas salas do palácio...
Seja como for, a ironia com que tendemos a encarar a questão das selfies está longe de se poder aplicar ao caso Netflix. Até porque, mesmo que possamos discutir o facto de os respetivos filmes não estarem autorizados a concorrer para a Palma de Ouro, importa reconhecer que Frémaux enfrenta, assim, com invulgar desassombro, um problema que se tornou transversal no planeta cinematográfico.
Que problema é esse? Pois bem, a tensão que pode nascer do facto de as empresas de streaming colocarem as suas produções diretamente nas plataformas da internet, sem as exibir nas tradicionais salas escuras. Está longe de ser uma abstração teórica, tanto que teve o seu primeiro capítulo no festival do ano passado.
Assim, na edição de 2017, o certame apresentou a concurso dois filmes produzidos pela Netflix: Okja, uma aventura fantasista assinada pelo sul-coreano Bong Joon--ho, e The Meyerowitz Stories, drama familiar do americano Noah Baumbach. Antes mesmo da sua exibição em Cannes, os proprietários das salas de cinema de França manifestaram a sua profunda inquietação: sendo já conhecida a decisão da Netflix de os exibir para os seus assinantes sem uma passagem prévia pelas salas, estaria o próprio festival a ser instrumentalizado num processo de secundarização dos circuitos tradicionais?
A memória de Kubrick
Frémaux tomou boa nota do imbróglio. E agora, ao antecipar a edição de 2018, fez o ponto da situação: "No ano passado, ao selecionarmos dois filmes da Netflix, pensava ser capaz de os convencer a lançá-los nas salas. Presunção minha: eles recusaram." Daí a posição adotada neste ano: por um lado, o festival reconhece a importância crescente das plataformas da internet que também produzem filmes (Amazon, Netflix e talvez, em breve, a Apple), mas não abdica de continuar a defender as salas como lugares e símbolos irredutíveis do fenómeno cinematográfico.
Curiosamente, um sinal inequívoco dessa defesa da experiência fundamental das salas está na primeira notícia divulgada sobre a programação deste ano: na secção de Clássicos, cada vez mais importante pela dimensão e pelo significado, será possível ver ou rever 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick.
Trata-se de comemorar com a devida pompa os 50 anos da obra--prima de Kubrick. Assim, o filme surgirá em cópia de 70 mm, numa "recriação fotoquímica fiel", apostada em recuperar as características das cópias originais naquele formato gigante, sem qualquer "retoque digital". No dia 12, a apresentar tão especial evento estará o realizador de Dunkirk, Christopher Nolan, assumido discípulo dos valores de espetáculo de Kubrick. Ou como diz Frémaux num comentário publicado no site do festival: "Congratulamo-nos antecipadamente por esta projeção especial em 70 mm que irá provar, se tal fosse necessário, que o cinema foi realmente inventado para o grande ecrã." Cannes 2018 parece definir, assim, um obstinado princípio de trabalho: digital, ma non troppo...