Cannes projeta a experiência angolana de Kapuscinski

O lendário trabalho em Angola do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski e evocado por Another Day of Life, um filme de animação apresentado extracompetição em Cannes.
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Projetado em Cannes numa sessão especial, extracompetição, Another Day of Life, representou, este ano, o desenho animado no interior do festival. Estamos perante a evocação de uma figura lendária do jornalismo polaco, Ryszard Kapuscinski (1932-2007), mais especificamente, do seu trabalho em Angola, entre o 25 de Abril e a independência do país, a 11 de novembro de 1975. O livro resultante dessa experiência está editado entre nós com o título Mais um Dia de Vida - Angola 1975 (Tinta da China, 2013).

Com este filme, e através dele, o certame terá querido celebrar as mais recentes evoluções no campo da animação, ao mesmo tempo prestando uma homenagem ao trabalho jornalístico, no seu papel histórico, mas também na sua dimensão mítica. Para Kapuscinski, na altura já com importante bibliografia dedicada a diversos conflitos políticos (incluindo uma coletânea de ensaios sobre África, editada em 1969), o confronto com os cenários angolanos trouxe-lhe uma perspetiva nova sobre as condições de vida das populações e, mais do que isso, os interesses geopolíticos em jogo em tão particular conjuntura política e militar. De tal modo que os especialistas da sua obra reconhecem no livro sobre Angola um momento emblemático na sua evolução profissional e intelectual. Numa abordagem ao filme, publicada no site Cineuropa, Aurore Engelen condensou a saga angolana de Kapuscinski numa expressão exemplar: "Angola mudou-o para sempre: partiu da Polónia como jornalista e regressou como escritor."

Another Day of Life é um projeto cinematográfico que procura estar à altura da riqueza de escrita e da complexidade humana da herança de Kapuscinski. Desde logo por essa decisão invulgar: elaborar uma evocação histórica fundamentada no artifício formal, e também no dramatismo da aventura, que o desenho animado pode favorecer.

É um desenho apostado em preservar algumas componentes realistas na definição das figuras humanas e respetivas ações, nessa medida parecendo querer prolongar a extraordinária experiência do israelita Ari Folman, em A Valsa com Bashir, sobre a guerra do Líbano de 1982 (curiosamente, um título que concorreu para a Palma de Ouro, em Cannes, na edição de 2008). Com uma sugestiva diferença: no caso de Bashir, os testemunhos documentais eram integrados, ou melhor, transfigurados (também) em imagens animadas; agora, em Another Day of Life, a dupla de realizadores - o espanhol Raul de la Fuente e o polaco Damian Nenow - apostou numa estratégia ainda mais radical: as imagens animadas vão alternando com registos documentais, em imagem real.

Segundo os autores, essa "duplicidade" narrativa era importante para dar conta de uma personagem como Kapuscinski e, em particular, o modo como Angola transformou o modo de olhar e sentir o mundo à sua volta. Ambos sublinharam tal dimensão em declarações ao site oficial do festival. Segundo De la Fuente, tratava-se de expor a batalha de um jornalista "que luta para sobreviver e encontrar a verdade no caos de uma guerra confusa"; além do mais, evocando o humanismo de Kapuscinski, definido por Nenow como alguém que sabia respeitar "qualquer pessoa", com ela lidando "para além das diferenças culturais e religiosas".

No contexto de Cannes, a passagem de Another Day of Life refletiu o empenho do festival em celebrar a diversidade da animação contemporânea, mas terá sido também um dos seus maiores falhanços de programação: os ecos da sua passagem foram muito escassos. Esperemos que, no contexto português, o filme possa chegar às salas escuras.

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