Beber chá e dormir bem. Assim é o rock depois dos 50
Ontem deu um concerto nas festas de São João em Vila Nova de Gaia, hoje irá de novo subir ao palco em Anadia. Aos 75 anos, José Cid não para. Seja com baladas como A Cabana Junto à Praia ou a pôr toda a gente a cantar Como o Macaco Gosta de Banana, os seus concertos têm sempre grande participação do público. Quando está em palco ele não se sente cansado. "A única coisa que me cansa é, depois, aquela hora, no final, em que fico a conversar com as pessoas, a dar entrevistas e autógrafos. É prazeroso mas já é mais cansativo", explica.
O segredo? Antes de mais gostar-se daquilo que se faz. "Esta foi a carreira que eu escolhi e tem sido a minha vida", diz. Afinal, como diz a canção, ele nasceu para a música. E assim vai continuar, com mais ou menos rugas. "Não há muitos músico desta idade que consigam fazer concertos de duas horas e meia para mais de 20 mil pessoas e ainda com milhares de visualizações no Facebook."
É verdade. Não há assim tantos. Mas há alguns um bocadinho mais novos. Quando, no passado dia 3 de junho, os Guns N"Roses subiram ao palco, em Algés, houve quem temesse o pior. E se passados tantos anos, para além dos quilos ganhos entretanto, eles já não tivessem a energia de outros tempos? Nada disso. Apesar de a voz já não ser como era, a boa forma do grupo foi confirmada pelas mais de 57 mil pessoas que assistiram ao concerto. Axl rodopiou agarrado ao microfone e Slash não parou. E o concerto durou quase três horas.
Há outros. Os concertos de Bruce Springsteen no Rock in Rio Lisboa (2014 e 2016) são um bom exemplo de como a idade pode ser um bom aliado para as estrelas de rock. Os Rolling Stones (que também estiveram no Rock in Rio em 2014) continuam peritos em fazer concertos para grandes multidões. E a lista poderia continuar por aí fora. Na próxima segunda-feira será a vez dos Aerosmith atuarem na Meo Arena, em Lisboa. Steven Tyler, o vocalista, tem 69 anos e todos os outros elementos da banda já estão na casa dos 60. Tyler sabe bem como é "living on the edge" e, entre problemas com drogas e doenças várias, estará muito longe da sua melhor forma. Será que isso vai ser visível em palco?
A sabedoria que vem com a idade
"A mitologia do sex, drugs & rock"n"roll não passa disso mesmo: mitologia!", avisa Adolfo Luxúria Canibal, o vocalista dos Mão Morta. "De resto, os excessos não têm a ver com a idade mas com a personalidade de cada um - há jovens músicos perfeitamente anjinhos e velhos músicos mais depravados do que Satanás! E depois, é como tudo - há coisas que nos encantavam quando nos eram desconhecidas e para as quais já não temos o mínimo de paciência depois de as conhecermos! Chama-se a isso crescer, acho. Ou aprender..."
Os Mão Morta iniciaram este mês uma digressão que celebra os 25 anos de Mutantes S.21, um dos discos de maior sucesso do grupo que iniciou a carreira em 1989. Após tantos anos na estrada Adolfo, de 56 anos, admite que a disponibilidade física já não é a mesma e que é essencial "aprendermos a defender-nos do cansaço e a concentrarmo-nos mais no que realmente interessa": "Aprendemos a equilibrar os gastos, a poupar quando a energia não é necessária e a ir buscá-la apenas quando é precisa. Mas, no final, os concertos tornam-se muito mais enérgicos do que quando se disparava para todos os lados!"
Rui Reininho, vocalista dos GNR, de 62 anos, concorda absolutamente com isto: "Sem peneiras nenhumas, posso dizer que antes ficava muito mais cansado ao fim de meia hora de concerto. Bebia cenas esquisitas, uns bagaços para animar, e ao fim de cinco minutos já estava com vontade de vomitar." As loucuras da juventude e aquele entusiasmo que os fazia "dar tudo" no arranque de um concerto, sem se preservarem, acabavam por ser prejudiciais.
Com a idade ganha-se experiência mas perdem-se outras coisas. "A memória já não é a mesma", admite Tóli César Machado, músico dos GNR. "Como temos um repertório muito grande, se ficarmos muito tempo sem tocar já me faz alguma confusão." O músico de 56 anos está nos GNR desde a sua fundação em 1981. Mas garante que continua a ter enorme prazer em subir ao palco: "Quem corre por gosto não cansa. Não é uma obrigação. Mesmo que não tenha concertos, todos os dias toco em casa."
Mas também ajuda estar em boa forma física. José Cid praticou sempre desporto - fez triplo salto, ténis, ciclismo, hipismo. E não tem dúvidas de que tudo isso ajuda a suportar o esforço de um concerto. "Não bebo álcool, nunca fumei nem nunca andei nas drogas. Não preciso disso. Já tenho a minha própria adrenalina."
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Cid admite ainda que tem alguns cuidados com a saúde: "Não pactuo com as alergias de nariz e olhos." Porque a voz é um instrumento como qualquer outro e a sua manutenção é essencial, o músico está atento aos primeiros sinais de doença e é acompanhado por otorrinos. Isso, uma infusão de gengibre e limão que a mulher Gabriela lhe prepara antes dos concertos e uma vida sem grande loucuras (substituídas há muito por serões no sofá a ver filmes), têm sido os seus verdadeiros cuidados. "Isto é um trabalho e dá muito trabalho. Continuo a ensaiar bastante para que, em palco, tudo corra bem. Há pessoas que acham que ser músico é fácil, que podem passar as noites nos copos e não trabalhar. Mas para que nada falhe é precise muito trabalho."
Esse é também um dos fatores sublinhados por António Manuel Ribeiro, o vocalista dos UHF, quando lhe perguntamos qual o segredo para uma longa carreira: "Primeiro é a identidade sonora, que deve ser genuína, sem seguir o que está na moda e que amanhã será relíquia. Além disso, há o trabalho, ensaios e mais ensaios, disciplina, horários, objetivos e foco. Quando nos levamos a sério as coisas funcionam."
"A idade não mudou em quase a minha maneira de viver a música, mas em Portugal os promotores e patrocinadores de espetáculos tendem a esquecer-se das cantoras que passaram os 50. Os homens não sofrem com esse problema. Os exemplos são visíveis e variados", queixa-se Lena D"Água. A cantora que foi a primeira mulher vocalista de uma banda de rock em Portugal, os Beatnicks, nos anos 70, mantém-se ativa aos 61 anos, embora longe de ter uma agenda preenchida. Hoje, por exemplo, estará no Cine-Teatro D. João V, na Amadora, com um concerto de piano e voz. Para se manter em forma, bastam-lhe pequenos cuidados: "Evito o sol, durmo no mínimo sete horas e nisso tenho sorte, não como carnes nem laticínios, tenho o cuidado de beber sempre bastante água, mas nunca fresca."
Dormir é o melhor remédio
A idade não afeta a performance musical, mas já pesa no corpo: "Os concertos deviam ser muito mais cedo. No resto da Europa os concertos são às oito da noite. Aqui, há sempre atrasos e pessoas que precisam de jantar", queixa-se Reininho, logo acompanhado por Tóli César Machado: "Às vezes até é bom não sermos cabeças de cartaz, eu já não aguentaria ficar a tocar até às 3 da manhã."
Adolfo Luxúria Canibal diz que não tem "cuidados particulares" ao preparar-se para um concerto - "A voz aguenta-se por si e a memória quanto mais exercitada melhor se torna. Pelo menos é isso que sinto" - mas reconhece que precisa dormir bem. "Estando descansado a memória funciona sempre melhor. Sempre foi assim, dormir e descansar é algo de que sempre precisei, a diferença é que agora sei-o, tenho consciência disso."
A energia nunca falta a António Manuel Ribeiro, dos UHF, mas é preciso ter alguns cuidados: "As loucuras tiveram o seu tempo, como tudo na vida. Ninguém fica um adolescente eterno, evoluímos, ou não. Eu mudei muito. Respeito sempre o público e esse respeito começa por mim. Tenho de estar bem comigo."
A 18 de dezembro do próximo ano, os UHF celebram 40 anos de carreira. De então para cá, com mais ou menos discos, com mais ou menos concertos, os "cavalos de corrida" não pararam. "Tornou-se uma forma de vida, escrever e cantar são parte integrante da vida. Depois das 17.00 não me esqueço do meu trabalho, ele está comigo sempre. Comunicar ideias é outra forma de respirar, é fazer algo que valha a pena", afirma Ribeiro, garantindo que ainda não se sente cansado: "Apesar da fadiga em certos momentos, não há cansaço quando se faz aquilo que se gosta."
Essa parece ser uma opinião consensual. Mais importante do que beber chá é estar em palco de corpo e alma. Como conclui Lena D"Água: "Para uma carreira longa é preciso a paixão pela música em primeiro lugar, porque a fama e o sucesso são areia que foge entre os dedos e não se pode contar com isso. A verdade é que nunca se sabe como vai ser o próximo mês, o próximo ano... Não é para todos".