As interrogações deixadas em aberto por uma obra-prima da ópera do século XX
Quando se perguntava que grandes óperas não tinham ainda subido à cena em São Carlos, o Peter Grimes era sempre das primeiras a ser mencionadas. Afinal, a obra estreada em 1945 logo se impôs no repertório corrente internacional como uma das grandes criações líricas que o século XX viu nascer. A "pecha" vai terminar amanhã, graças à vinda a Lisboa de uma produção estreada na English National Opera em 2009, assinada pelo experiente David Alden, e que entretanto passou por Antuérpia, Oviedo e Berlim (teatros coprodutores) e foi reposta (2014) em Londres.
Ambientada numa comunidade piscatória no Suffolk, é a história de um homem (Grimes) em confronto com a comunidade a que pertence e não pertence, e da sua inevitável destruição final. Para David Alden, Grimes "é alguém muito complexo e dentro do qual se encerra um mistério que nunca nos é revelado". Considera que "há uma óbvia alusão a uma situação de abuso sexual sobre os rapazes que trabalham para ele, mas ela está até mais na música do que no palco". Segundo o encenador, é lançada "ao público e aos próprios intérpretes" a seguinte interrogação: ""É ele um monstro e a sociedade age legitimamente ao puni-lo? Ou será a sociedade o monstro e ele na verdade a sua vítima?"" Do seu ponto de vista, "há culpa em ambos os campos, mas cada um deve tentar responder", embora reconheça que a sua visão "se inclina para um Grimes que claramente não é um monstro e que é a sociedade que o demoniza, por ser outsider, e o força a "vestir--se" como tal".
E não há amor que lhe valha: "Ellen Orford deseja salvá-lo. Ela ama-o, ou pelo menos tem grande afeição por ele, mas, na verdade, os projetos de cada um deles em relação ao outro nunca saem do reino da fantasia e da ilusão. Quer a personalidade de Peter quer o estigma que a comunidade impõe impediriam em última análise que eles alguma vez ficassem juntos."
História atrás da história
Por trás desta história de pescadores está, segundo Alden, o próprio Britten: "A trama espelha de certa forma os receios dele, quando em 1942 regressou a Inglaterra vindo dos EUA, para onde tinha ido por ser objetor de consciência. A comunidade piscatória reflete a forma como ele via a mentalidade do povo inglês, diante da qual, até por ser homossexual assumido, se sentia um estranho. Ele descobriu o poema original de George Crabbe quando estava na Califórnia e percebeu que era "o" tema para uma ópera, mas depois apercebeu-se de que seria indispensável estar na sua Inglaterra para a escrever."
Mas algo "corre" por aqui de mais profundo e inconfessável: "O Peter Grimes original é um personagem de maldade inequívoca, explícita, mas Britten fê-lo muito mais multifacetado, subtil, misterioso. Acho que ele se foi identificando com Grimes à medida que compunha, dando-lhe colorações poéticas, visionárias, em qualquer caso positivas." Depois, a seu ver, entra o modus faciendi de Britten: "Os temas dele versam quase sempre a inocência destruída. E ele próprio falou de Grimes como "um idealista torturado". Mas os temas verdadeiros, em Britten, são sempre "submersos", emaranhados, obnubilados. De tal modo que é difícil perceber qual é o real tema de fundo nas suas óperas - com exceção de Morte em Veneza, sua última ópera, onde finalmente foi explícito. São tantas as camadas, o não dito, o ocultado, o apagado, até! Creio que isso terá ver com a forma como a vivência da homossexualidade moldou a personalidade e forma de estar."
Seja como for, observa David Alden, a América "ficou" em Peter Grimes: "Veja, ele estabeleceu-se em Nova Iorque e inseriu-se no meio artístico da cidade, conviveu com as pessoas do jazz, dos musicais da Broadway, Kurt Weill, os amigos de Gershwin [falecera em 1937] - há muito vindo desses mundos nesta ópera." Mas também de um mundo centro-europeu: "A influência de Alban Berg é clara - do Wozzeck, sobretudo. Britten chegou a planear ir estudar com Berg em Viena, ele admirava-o imenso." Daí David Alden concluir que, "esteticamente, esta ópera está algures entre o Wozzeck e o Porgy and Bess [de Gershwin]".
Um tenor "contra" um coro
Para o protagonista Peter Grimes, a tradição tem oscilado entre tenores líricos (como Peter Pears, companheiro de Britten e primeiro Peter Grimes) e tenores dramáticos, como Jon Vickers: "Já fiz com uns e outros e funciona com ambos, pois depende mais da personalidade de quem canta. Agora, o mais famoso Grimes de sempre foi sem dúvida Jon Vickers. Britten não gostava de o ouvir no papel, mas acho-o fantástico. Vi-o fazer o Grimes umas 25 vezes e mudou a minha vida!"
Outra marca fundamental de Peter Grimes é a escrita coral: "O coro tem um papel gigantesco, plenamente a par do protagonista. É uma das grandes óperas corais de todo o repertório, como Boris Godunov e algumas de Verdi. Trata-se de um enorme desafio para qualquer coro e ainda por cima o texto é complicado de cantar, até para coros ingleses!"
Peter Grimes
Direção musical: Graeme Jenkins
Encenação: David Alden
Elenco: John Graham-Hall,
Emily Newton et al.
Coro São Carlos, Orq. Sinf. Portuguesa
Récitas dias 30, 1, 5 e 7 (20.00), dia 3 (16.00). Bilhetes dos 20 aos 60 euros