"Aquarius é um filme de resistência"
Antes de mais nada, convém referir que tem uma relação muito forte com Portugal e os seus festivais. Esta está longe de ser a primeira vez que cá vem.
É uma relação forte para além dos meus filmes. A minha primeira vez que vim a Portugal foi em 1983. Tinha 14 anos e a minha família morava em Inglaterra. Foram as primeiras férias de verão com a minha mãe, que veio a conduzir desde Inglaterra a Portugal. Aliás, a personagem da Sonia Braga em Aquarius tem muito que ver com a minha mãe. Tenho uma imagem marcante deste vosso país que mudou tanto! Depois comecei a vir já em adulto muitas vezes para o Festival Luso-Brasileiro da Feira, onde o Américo Santos programou sempre os meus filmes. A relação com Santa Maria da Feira foi muito forte. Lembro-me também sempre da experiência do IndieLisboa.
Aquarius não deixa de ser desconcertante por ser um filme sobre este tempo. Este tempo do Brasil, agora, com toda esta questão da tomada do poder de Temer. Claro que há uma coincidência dos diabos, sobretudo porque quando filmaram não imaginavam que as coisas pudessem chegar a este ponto, mas não deixa de ser notável quando o cinema toca no real desta maneira, o cinema de ficção. Esse toque de contemporaneidade não o deixou surpreendido?
Sim! Eu tenho um fascínio pela passagem do tempo. O cinema brinca e joga com o tempo...
Mas o que impressiona é que Dona Clara, viúva aposentada e forçada a sair do seu lar, poderia ser um espelho de Dilma, a Presidenta afastada...
Claro! Já em Cannes muitos brasileiros ficaram estupefactos! E este filme foi pensado com anos de antecedência! Para falar verdade, quando filmávamos Aquarius existia já um início de tempestade, mas eu como cidadão brasileiro não podia antecipar o que aconteceu nove meses depois. Pensava que a nossa democracia era mais sólida.
Nem suspeitava que estava a fazer um filme de resistência?
É um filme de resistência, Aquarius é também muita coisa. Em primeiro lugar é sobre alguém que diz não, que tem a oportunidade de negar uma resposta. Muitas vezes, na sociedade e no mercado, não é de bom tom dizer não. Todos acham que Clara deveria aceitar a proposta de sair do seu apartamento, sobretudo o mercado. A resistência que filmamos parte logo da liberdade da personagem. Ela tem a liberdade de não querer ser comprada! E isso é um ato político.
Além da tramoia que foi o afastamento do filme na candidatura brasileira aos Óscares, que outros efeitos práticos sofreu com o protesto antigolpe na escadaria de Cannes?
Começou por tentarem classificar o filme para maiores de 18. Protestámos e foi revertido. Houve grande polémica pois já se sabia das retaliações ao filme, sobretudo com essa questão do Óscar. Ficar de fora da escolha brasileira para o Óscar de melhor filme estrangeiro não me surpreendeu - já tinha falado isso aos meus amigos. Além disso, cinco dias depois do protesto em Cannes, foi feita uma denúncia anónima que levou meses a chegar à justiça. Uma denúncia por ser programador do Cinema da Fundação, que era associado ao Ministério da Educação. O problema é que a denúncia foi feita na base de se pensar que era associado ao Ministério da Cultura, o ministério que fomenta o cinema. Ou seja, acusações vazias. No próximo mês eu e o meu advogado vamos defender a verdade.
O Kleber é um cineasta a tempo inteiro depois de um longo período como jornalista de cinema...
Pois é, os filmes ficaram muito grandes mas tenho saudades desses tempos em que ia ao cinema profissionalmente, onde poderia descobrir alguns filmes.
Sente que a crítica ainda é importante? Aquarius foi um filme muito alavancado pela imprensa.
Sempre achei que a crítica é importante. Muitos têm um discurso muito pessimista acerca da importância do papel da crítica. Mas não se enganem! A crítica, os festivais, as mostras e as curadorias ajudam um filme a respirar, sobretudo se for independente. Vá, a crítica ainda é muito importante.