"A Rapariga no Comboio": uma janela indiscreta sobre carris
Com Emily Blunt no papel principal, "A Rapariga no Comboio" é uma tentativa de recriação dos thrillers de Hitchcock.
Os comboios sempre fizeram parte de um certo imaginário cinematográfico. Desde o fascínio puro pelo movimento dessa máquina da era industrial, como o identificamos no filme dos irmãos Lumière, de 1896, que apresentava a chegada de um comboio à estação de La Ciotat, ao palco do romance, como o descobrimos, magnífico, em O Expresso de Xangai (1932), de Josef von Stern-berg, Breve Encontro (1945), de David Lean, ou Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater, passando pelo delito e o mistério de Desaparecida! (1938) e O Desconhecido do Norte Expresso (1951), de Alfred Hitchcock, ou ainda Um Crime no Expresso do Oriente (1974), de Sidney Lumet... muitos são os exemplos que permitem reconhecer o protagonismo do comboio na construção atmosférica destas narrativas levadas ao grande ecrã. De Noël Coward a Patricia Highsmith e Agatha Christie, muitos são, enfim, os autores que exploraram o adultério ou a culpa, entre os vapores inebriantes da locomotiva.
No âmbito dessa simbologia, intimamente ligada ao género do thriller, chega amanhã, feriado, às salas escuras portuguesas A Rapariga no Comboio, uma adaptação do livro homónimo da britânica Paula Hawkins, que foi o título mais vendido em Portugal no ano passado. Mas o êxito acelerado e imparável deste bestseller, cuja qualidade mereceu mesmo um elogio do mestre do terror Stephen King, na rede social Twitter, não se limitou, evidentemente, ao nosso país.
A Rapariga no Comboio é um fenómeno vertiginoso, que resultou, para além da publicidade e das campanhas de marketing, nomeadamente da editora americana Riverside Books, de um processo viral de partilha na internet, em que cada leitor, depois de ler (com a rapidez de quem está inevitavelmente preso pela linha do suspense), passava a recomendação aos amigos. Apenas duas semanas depois da publicação já se encontrava no topo da lista do The New York Times, e essa robustez mediática, que ainda se mantém bem viva, tem criado sólidas expectativas de sucesso para o próprio filme (não esquecendo o aceno à temporada de prémios...). Afinal, poderia Hollywood passar ao lado deste acontecimento literário? Conhecemos bem a resposta.
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Consequências do voyeurismo
Assinado por Tate Taylor, o realizador que chamou as atenções com o filme As Serviçais (2011) - melodrama que investigava o tema social da segregação americana nos anos 1960, entre senhoras e criadas -, A Rapariga no Comboio representa uma nova incursão no atribulado cosmos feminino, que desta feita se molda pelo mistério sombrio em torno de uma mulher alcoólica. Se o facto de estar novamente a dirigir mulheres estabelece uma correspondência entre os dois filmes, o certo é que o tom é muito diferente.
A rapariga do título, por sinal bastante crescida, Rachel (Emily Blunt), é uma figura carregada de melancolia, que faz viagens diárias para o trabalho sempre sentada no mesmo lugar do comboio, com vista para uma casa que toma como objeto das suas fantasias e idílios. Ela é o rosto e a voz off que marca, com subtileza, o início desta história e da nossa curiosidade.
Num plano mais metafórico, ela representa a condição voyeurista de qualquer espectador, propondo essa afinidade connosco. Segue observando um específico quadro de intimidade, sem o consentimento de quem é observado, como expressão de um vício rotineiro. E através desse ato incessante e impulsivo do olhar e imaginar ao mesmo tempo, acaba por se envolver na investigação de um crime, alimentando a narrativa que lhe foi sugerida nas imagens fixadas na memória, de uma mulher (Haley Bennett) na varanda, abraçada a alguém que não é o marido.
O trabalho obstinado da memória será o ponto crucial do filme, que recria vezes sem conta o dia em que Rachel saiu do comboio e, aparentemente, foi atrás dessa mulher da varanda... Por causa dos problemas de alcoolismo, que estão relacionados com o seu divórcio, a protagonista acorda muitas vezes sem saber o que aconteceu na noite anterior, e esse estado de amnésia temporária é o fator que vai protelando a grande revelação, numa espécie de teia nociva que envolve outras personagens diretamente ligadas a ela. Só no final, claro, teremos a certeza do que realmente se passou.
A culpa de Hitchcock
Este é o território típico da psicanálise, com o tema da culpa, e da sua transferência entre as personagens, a lançar vestígios do ADN hitchcockiano (até pela existência simbólica de duas esfíngicas loiras no coração do enredo). No entanto, Taylor, que na sua ainda curta filmografia está a experimentar o género do thriller, não se revela especialmente preparado para o desbravar, mesmo beneficiando do contributo da argumentista Erin Cressida Wilson, que tem no currículo Fur: Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (2006), a adaptação de um livro de Patricia Bosworth. Digamos que Tate Taylor procura compensar a falta de perícia com um anémico exercício copista, revelando muito facilmente as suas fontes, sem as trabalhar num corpo fílmico. O resultado é uma autêntica manta de retalhos dos lugares-comuns do suspense, que não encontram particular orgânica visual ou narrativa, apesar do sugestivo material que lhe está na origem. Por outras palavras, estamos diante de uma estratégia cansada, com vários artifícios mas sem arte que faça o espectador segurar-se à cadeira. Já agora, sublinhe-se que esse nervoso miudinho era algo que Hitchcock conseguia na perfeição, não precisando sequer de guardar o segredo para o fim. Dizia que não havia terror no bang da pistola, mas sim na sua antecipação, e que era preciso dar prazer aos espectadores, nestes termos: "O mesmo prazer que têm quando acordam de um pesadelo."