A mulher que chamava a tragédia
Com o passar do tempo, Dalida arrisca-se a ser apenas a voz que, num francês muito próprio, vai dando troco a Alain Delon numa cantiga - em que ele fala e ela canta - chamada Paroles... Paroles..., gravada originalmente pela dupla italiana Mina e Alberto Luppo e passado ao francês um ano mais tarde.
A sua morte (a 3 de maio de 1987) interrompeu uma carreira que, feitas as contas pelos diversos editores que a representaram, correspondeu a 120 milhões de discos vendidos em vida e mais de 20 milhões a título póstumo. Os franceses, que adotaram apaixonadamente esta egípcia de ascendência italiana, nascida nos arredores do Cairo (17 de janeiro de 1933), ainda lhe prestaram a devida homenagem quando, em resposta a um inquérito nacional, em 2001, a votaram como a segunda cantora mais importante do país durante o século XX, logo a seguir à inevitável Edith Piaf.
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Mas, em boa verdade, é o filme de Lisa Azuelos que vem resgatar Dalida à poeira do esquecimento, ato que se tornará mais útil se voltar a ser ouvida como merece, num percurso que acumulou boas marcas ao longo de mais de 30 anos.
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Essa reaproximação aos feitos musicais faz mais sentido se recordarmos uma menina, de saúde frágil, que acompanhava o pai, violinista na Ópera do Cairo, aos ensaios. Iolanda Cristina Gigliotti conheceu cedo as adversidades: um problema sério nos olhos (nunca conseguiu curar completamente o estrabismo, apesar de várias operações) obrigou-a a passar 40 dias no escuro, vendada, para evitar a luz.
Muito pior do que isso, perdeu o pai logo em 1945, na sequência dos distúrbios nervosos que este sofreu, depois de passar muito tempo no campo de concentração de Fayed, perto do Cairo, durante a II Guerra Mundial. Voltamos a encontrá-la cinco anos depois de ter recusado continuar a usar óculos, num momento que parece dar-lhe razão: em 1954, conquista o título de Miss Egito. Na sequência do troféu de beleza, começa a ser chamada para participar em filmes rodados na capital - num dos primeiros, em que não aparece creditada, conhece Omar Shariff, seu compatriota; noutro, serve de dupla a Joan Collins; naqueles em que tem direito a presença na ficha artística, surge como Dalila e Yolanda, ainda antes de se "transformar" em Dalida.
Amália como "madrinha"
Decide tentar a sua sorte na Europa, em Paris. Aí, rapidamente se apercebe de que os ventos não sopram de feição a mulheres do seu tipo físico, ela que é esguia, com uma cara exótica e, assim, fica distante dos géneros então dominantes (os de Simone Signoret, Brigitte Bardot, Michèle Morgan ou Danielle Darrieux). Vira-se para as cantigas e assenta praça nos restaurantes-cabarés parisienses Villa d"Este e Drap d"Or.
É ouvida acidentalmente por Bruno Coquatrix, empresário e dono do Olympia, que a aconselha a participar num concurso de amadores que vai organizar na sua mítica sala. A 9 de abril de 1956, a prestação de Dalida é assinalada por dois homens: Eddie Barclay, editor discográfico que a contrata na hora, e Lucien Morrisse, diretor artístico de rádio e televisão, que virá a ser o único marido da cantora. A 26 de agosto de 1956, é editado o primeiro disco da cantora, com uma canção chamada Madona, que mais não é que uma adaptação do êxito Barco Negro, gravado e popularizado por Amália Rodrigues (que, por sua vez, aproveitava a música mas não a letra da brasileira Mãe Preta).
O resto é lenda, numa história em que o êxito profissional andou sempre paredes-meias com a tragédia pessoal. Há 50 anos, o cantor italiano Luigi Tenco, então com 28 anos e namorado de Dalida, suicidou-se depois de a sua canção Ciao Amore Ciao ter sido chumbada pelo júri do Festival de San Remo. Dalida tentou seguir-lhe os passos e esteve cinco dias em coma.
Em 1970, foi o seu ex-marido, Lucien Morisse, a pôr fim à vida. Em 1975, o cantor Mike Brant, um dos grandes amigos da cantora, teve destino semelhante. Richard Chanfray, com quem Dalida viveu durante dez anos, também se suicidou, dois anos depois da separação. A esta lista negra, soma-se mais um enorme revés: na sequência de uma gravidez indesejada e de um aborto clandestino, Dalida deixou de poder ter filhos, o que foi contribuindo para uma depressão que conheceu o apogeu em 1987: depois de deixar um pedido de desculpas ao público, confessando que a vida se lhe tornou insuportável, recorreu aos barbitúricos para pôr fim ao sofrimento. E, com tudo isto, ficam para a memória o seu sorriso aberto e a sua voz vibrante. Agora, outra vez.