A morte de BB, aquele que sabia bem onde estava no 25 de Abril

1934-2017. Conhecido como colunista nos últimos anos, começou na António Arroio pois queria ser arquiteto. Foi das palavras, apenas
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Quem morreu hoje aos 83 anos nunca ponderou retirar o "P" do nome à conta de modernices e por isso ficou sempre Armando Baptista-Bastos. Havia esse cuidado nas redações em evitar um deslize que irritaria o jornalista, o escritor e o polemista que ficou conhecido por muitas reportagens e entrevistas, bem como o género que gostava de cultivar: a crónica. E livros, muitos, reeditados há uns anos em género de obras completas. Mesmo que a frase que mais lhe estava agarrada à pele nos últimos anos fosse "Onde é que você estava no 25 de Abril?", que era a pergunta que lançava de rajada no início de um conjunto de entrevistas que fez. Sobre esse tema, desiludido com os passos atrás na Revolução de Abril, escreveu Elegia Para um Caixão Vazio. Está tudo dito.

Aos 83 anos, Baptista-Bastos continuava preocupado com a política à portuguesa, tanto assim que na sua página de Facebook - sim, ele tinha uma, que tem atualizações recentes - colocara aquando da morte de Mário Soares o texto da sua crónica em que alertava para uma sentença do ex-Presidente: "Soares avisou-nos de que a liberdade não era um bem permanentemente adquirido".

Não será por acaso que tem ali também uma fotografia dele com José Saramago, outro membro da mesma geração que gostava de escrever o que pensava. E Baptista-Bastos fazia-o sem dificuldade, como confessava num dos seus últimos textos, em fevereiro: "Um homem é o que para os outros foi ou é, e, também, aquilo que o não deixaram ser. A minha vida permitiu-me acumular experiências, e tive a sorte de trabalhar, em dois diários, com grandes, extraordinários, profissionais. Os jornais, esses, acabaram e de forma triste e desamparada. Aos jornalistas, a esses, recordo-os sempre com estima e afeição. Sou um produto deles, e eles sempre olharam por mim com o cuidado suscitado pela amizade. Não exagero: o pulsar do meu coração não falha, quando leio ou assisto, pelas televisões, nos jornais, a reportagens que marcam o sobressalto daquilo que sinto. Esses sentimentos prolongo-os até hoje, numa memória constante que, amiúde, se confunde com o meu próprio destino."

Nascido em 1934, o jornalismo surge aos 19 anos, depois de ter experimentado outras vias de expressão como as que estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio. A carreira na imprensa começa num dos grandes títulos, que viu a a morte em 1975 por lutas políticas, O Século. Depois, segue-se a subchefia de redação de O Século Ilustrado.

Não ficaria por aí, antes escreveria em outras cadeiras, as de O Diário, República, Europeu, Almanaque, Seara Nova, Gazeta Musical e de Todas as Artes, Época, Sábado e Diário Popular. Aqui, ficou mais tempo, cerca de duas décadas. Entretanto, não deixou de passar ao mundo o que se passava por cá enquanto correspondente da Agência France-Presse em Lisboa.

Quanto à opinião e crítica, não lhe faltaram colunas em vários órgãos de comunicação social: Jornal de Notícias, A Bola, Tempo Livre, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Expresso, Jornal do Fundão, Correio do Minho, Diário Económico, Diário de Notícias, Jornal de Negócios e Correio da Manhã. E para que não faltasse a iniciativa empresarial, esteve na origem do semanário O Ponto. Também se ouviu a sua voz na rádio e viu-se o seu habitual laço ao pescoço nas televisões.

Quanto à vida literária, não lhe faltaram livros e prémios. Dos primeiros, mais de uma dezena de romances, dois ensaios, meia dúzia com crónicas; dos segundos, começou em 1987 com o Prémio Literário Município de Lisboa e continuou com o PEN Clube, dos Críticos Literários e do Clube Literário do Porto, entre outros. Está ainda traduzido em várias línguas.

Quanto à vida nas redações, as histórias não acabam, ou não tivesse convivido com figuras como José Cardoso Pires, Luís de Stau Monteiro, Vasco Pulido Valente ou Alexandre O"Neill. Entre os furos jornalísticos estava uma entrevista de meia hora com o Beatle Paul McCartney em 1965, no auge da banda de Liverpool.

Quanto à vida, perdeu cedo a mãe e começou cedo a trabalhar, aquilo a que nos últimos tempos se chama trabalho infantil mas não altura pois servia para ganhar uns cobres e aprender uma profissão. Definiu as suas experiências iniciais como "aprendiz de droguista", empregado de confeitaria, marceneiro, ajudante em oficinas, tudo isto antes dos 13 anos, quando ainda usava calções e antes de fugir para ir ler nas bibliotecas.

Baptista-Bastos estava há cerca de dois meses internado no Hospital de Santa Maria e foi a mulher que anunciou o falecimento. As reações à morte foram muitas, como a de Herman José, que muito brincou com a frase do 25 de Abril e recordou ter conhecido Baptista-Bastos "pela mão do Raul Solnado, que o adorava". Fernando Dacosta disse: "Foi um grande criador e cultor da Língua portuguesa. Era um jornalista que dizia que não havia diferença entre jornalismo e literatura". Para Mário Zambujal: "Foi grande prosador, grande cronista, jornalista e escritor de muita qualidade. Também brilhante polemista, um homem de esquerda. Era um combatente".

Um "combatente" a quem tudo quase todos perdoavam. Afinal, como dizia num texto de agosto de 2012: "As coisas e as pessoas alteraram-se. Eu próprio me modifiquei e ao modo de avaliar os outros. Volto à secretária, batuco nas teclas, acabei de escrever acerca de Jorge Amado, vou ser avô pela segunda vez, e dentro de poucos dias. Estou contente e atento. Não digo que estou feliz porque tudo o que me rodeia incita-me ao desgosto e ao desamparo." Palavras amargas, daquele a quem muitos chamavam apenas de BB. Com o "P" mudo.

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