A maternidade ferida de "Julieta"
Pedro Almodóvar e Alice Munro. Que remota possibilidade vincularia o cinema de estética garrida do primeiro e a escrita serena e minimalista da segunda? A resposta surge límpida em Julieta, o mais recente filme do cineasta espanhol, que adapta três contos, interligados pela mesma personagem, do livro Fugas (editado em Portugal pela Relógio D"Água). Entenda-se: qualquer adaptação narrativa em Almodóvar é um exercício de livre ajuste ao seu peculiar universo visual. Saber que Julieta esteve em vias de se tornar a sua primeira produção em língua inglesa faz-nos conjeturar sobre o que seria um filme de Almodóvar fora do eixo da sua identidade cultural, desse imaginário vivo que caracteriza toda a sua obra.
Há uma linguagem de cores e texturas ao serviço das emoções que, no caso de Julieta, recupera a específica temática feminina apartada dos últimos trabalhos. E é aqui que o mistério com Munro se resolve - as histórias no feminino são matéria determinante na aproximação entre a cinematografia de Almodóvar e os livros da escritora canadiana (Prémio Nobel em 2013).
Em Julieta, estamos no domínio introspetivo de Tudo sobre a Minha Mãe, adornado de elementos detetivescos na tradição de Hitchcock. O primeiro plano do filme denuncia, aliás, essa natureza íntima, focado num tecido vermelho que esconde o pulsar do coração da personagem principal. É como se a câmara pedisse licença para entrar no território proibido de Julieta (Emma Suárez), que, prestes a sair de Madrid com o namorado para se instalar em Portugal, é confrontada com notícias da filha desaparecida há décadas, através de uma amiga de infância dela. A convocação do passado vai despertar uma angústia que estava adormecida e suspender os planos do futuro, levando-a a regressar ao prédio onde viveu com a filha, Antía, para se dedicar a escrever um diário de cartas, e narrar-lhe a sua história, desde a noite em que foi concebida. No fundo, Antía somos nós, espectadores, que recebemos as palavras, simultaneamente, reveladoras e interrogativas em relação ao que terá provocado o desaparecimento voluntário da filha.
Neste processo de reconstituição da memória, que vai aos anos 1980, reencontra-se a essência de Almodóvar: as cores das roupas e dos cenários são mais intensas, como que a comunicar a época do desejo e paixão dessa jovem Julieta (Adriana Ugarte) por um homem que conheceu no comboio, na noite em que se sentiu culpada pela morte de outro homem (a noção de culpa, que o cinema de Hitchcock tão bem explorou, acabará por moldar os acontecimentos). Mais tarde, grávida desse homem, um pescador galego que será o pai de Antía, muda-se para casa dele e para o núcleo de uma intriga feminina, encabeçada pela personagem da sempre genial Rossy de Palma... Não são mulheres à beira de um ataque de nervos, mas mulheres que evocam uma mitologia do cinema de Almodóvar, ligada à maternidade ferida.
Pela dupla natureza, de radiografia íntima e de thriller, Julieta é um jogo de encenação que se sustenta no retrato a dois tempos, com dois rostos (Suárez e Ugarte) oferecidos à metamorfose pela dor da ausência e da culpa.