A genética e a estética de Charlotte Gainsbourg
O impacto de um apelido pode tomar qualquer direção: no caso de Charlotte Lucy Gainsbourg, filha de Serge mas também de Jane Birkin, o peso parece ter sido imenso. Bom para abrir portas, sobretudo ao início, quando o pai a "arrolava" para o diálogo numa das suas canções "escandalosas", daquelas em que levava ao limite a arte da provocação - Lemon Inceste, que depois se estendeu pelo filme (e disco) Charlotte Forever. A miúda tinha, respetivamente, 13 e 15 anos, quando cantou e quando atuou. Tímida, introvertida, quase "atirada" para cima de um palco e para a frente de uma câmara, precisou de crescer e de ganhar vida, lastro e experiência para chegar ao ponto onde hoje a encontramos. Mesmo que o seu percurso de atriz tenha sido precoce, depois de ganhar o César como atriz mais promissora aos 14 anos (por L"Efrontée, de Claude Miller), feito que repetiria década e meia depois (com La Bûche, de Danièle Thompson) no prémio de atriz secundária, sendo nomeada em mais quatro ocasiões (A Pequena Ladra, Love, Etc., Como Casar e Ficar Solteiro e A Árvore), os compassos iniciais tinham pouco que ver com a arte da representação. A própria Charlotte confessaria, já na maturidade plena, que essa fase foi fantástica, mas "pela aventura e pela diferença" face às raparigas da mesma idade, muito mais cingidas a um quotidiano rotineiro do que ela.
Claro que, por estes dias, nada disto vai além de uma memória distante, uma vez que Charlotte já inscreveu o seu nome na lista das melhores atrizes francesas e europeias. É o mínimo que pode dizer--se de quem, sem sair de "casa", já rodou com Elie Chouraqui, Agnès Varda, Bertrand Blier, Bruno Nuytten, Patrice Leconte, Claude Berri, Michel Gondry ou Patrice Chereau. Charlotte filmou por quatro vezes às ordens e ao lado de Yvan Attal, seu parceiro de vida e pai dos três filhos, uma vez com Andrew Birkin, seu tio materno, duas com Jacques Doillon, seu "padrasto" por algum tempo e pai da sua meia-irmã Lou Doillon. Mas estendeu a sua área de serviço a realizadores como os irmãos Taviani, Franco Zeffirelli, Emanuele Crialese, Asia Argento, Alejandro Iñárritu, Todd Haynes, James Ivory ou Wim Wenders.
Talvez o mais espantoso seja a possibilidade de a vermos igualmente à vontade em filmes de pura emoção, como o êxito francês Samba, em blockbusters de Hollywood, como O Dia da Independência: Nova Ameaça, ou a dar corpo às mais retorcidas personagens dessoutro agent provocateur que é Lars von Trier - aconteceu em Anticristo (2009), Melancolia (2011) e Ninfomaníaca (2013). E, de todas estas situações, Charlotte emerge sempre com graça e com distinção.
Um disco de figuras
Apetece dizer que o seu trabalho de "vestir" e "despir" peles alheias acaba por tornar-se fundamental para o magnífico desfecho de Rest, o disco em que arrisca de forma substantiva o papel de autora solitária de nove das onze letras que, por sua vez, a deixam voar em diferentes direções.
As duas exceções também justificam a nota autónoma: em Sylvia Says, a cantora socorre-se das palavras e da inspiração de Sylvia Plath, revivida com brio sob um manto diáfano em que o disco ganha prevalência nos temperos; em Songbird in a Cage, Charlotte cede o seu posto a um grão-mestre chamado James Paul McCartney (também presente como instrumentista), que lhe oferece uma canção tensa e, até certo ponto, angustiante - emoções que não são, de todo, estranhas a esta mulher que é também atriz.
Não sendo a melhor canção presente no álbum - apenas o quarto que Charlotte assina a sério, depois da fase juvenil -, o momento mais tocante deve ser entregue a Kate, cujo título e teor não deixam margem de erro: trata-se de uma despedida a outra das suas meias-irmãs, Kate Barry (filha de Jane Birkin e do compositor inglês John Barry), que morreu - aparentemente por suicídio - em dezembro de 2013.
Agora, na primeira ocasião em que regressa ao estúdio, Charlotte evoca, superiormente, o passado comum que se vai desvanecendo e o futuro prometido que não cumpriram, pelo menos em comum. Todas as músicas - com exceção da melodia de McCartney e da que ilustra o apaixonado e sonhador tema-título, que é do compositor Guy-Manuel Homem-Christo, dos Daft Punk - são da assinatura do produtor: SebastiAn, uma presença destacada na música eletrónica francesa.
Nem por isso deslizamos para qualquer espécie de monotonia, uma vez que SebastiAn faz, com os arranjos, aquilo que Charlotte consegue com os poemas: diversifica. Por isso temos direito a mais disco na perturbada (e perturbadora) Deadly Valentine, a uma canção de embalar adultos também com várias "camadas de recheio" em Ring--A-Ring Roses, um indisfarçado erotismo em Lying with You (porventura o momento em que a voz de Charlotte mais se aproxima do sussurro que distinguiu e distingue a mãe), um toque de pai Serge em I"m a Lie, uma estilização que percorre a longa estrada entre François Hardy e Carla Bruni em Dans Vos Airs, o regresso à asfixia urbana, com baixo e rítmica funky na espantosa Les Oxalis, tão falada como cantada. Por isso temos pena de quando o disco acaba.
Nos episódios anteriores, Charlotte tinha deixado correr o marfim, deixando os comandos aos seus companheiros em cada etapa - o papá Serge em Charlotte Forever, Nigel Godrich, Jarvis Cocker (Pulp) e Neil Hannon (Divine Comedy) em 5:55, Beck em IRM e Stage Whisper. Agora, a questão é pessoal. E ainda bem: tal como Charlotte, este álbum não tem idade, o que significa que vai ouvir-se sem desgaste durante muito tempo. Tal como Charlotte, ajeita-se a qualquer estado de espírito, se bem que mais a uns do que a outros Tal como Charlotte, irradia uma beleza discreta, uma sinceridade e uma integridade que pedem meças. Ainda por cima, está defendido contra os preconceituosos que olham a música de França como algo fora de moda e algo de interesse deficitário - é bilingue, seguindo a genética mista da artista. Não se pode pedir mais.
Rest
Charlotte Gainsbourg
Ed. Because Music
PVP: 19 euros