A atração do espelho, dos mestres da pintura à arte conceptual
La Femme au Miroir, a mulher ao espelho, escultura de 1931 de Ernesto Canto da Maia dá as boas-vindas no átrio do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian, enquanto o olhar é atraído para a encenação com espelhos criada pelo designer Mariano Piçarra para a exposição Do Outro Lado do Espelho, que hoje abre ao público na galeria principal. Entrevê-se Sinfonia em Branco, n.º 2, a jovem que se reflete no vidro, da autoria do pintor norte-americano que trabalhou em Inglaterra James Abott McNeill Whistler.
Do Outro Lado do Espelho é um casamento de arte antiga e contemporânea, do conhecimento de Maria Rosa Figueiredo, ligada à instituição há 45 anos, e de Leonor Nazaré, conservadora da coleção moderna. "A Rosa teve esta ideia há anos, é-lhe muito cara", conta a diretora do Museu Gulbenkian.
Penelope Curtis chama-lhe "a grande exposição de inverno" da Gulbenkian, dirigida ao público nacional, e parte desta premissa: como a reflexão é tratada por diversos artistas.
Para Rosa Figueiredo, é a concretização de um projeto com anos, iniciado quando João Castel-Branco liderava o Museu Calouste Gulbenkian, em pausa enquanto esteve como diretora interina, reformulado com a chegada da britânica Penelope Curtis, já com a missão de criar um museu que juntasse as coleções do fundador e do Centro de Arte Moderna. É o que acontece nesta exposição, em que se juntam peças históricas e contemporâneas. "Embora não fosse a minha ideia inicial, estou muito contente."
"O meu projeto era todo de arte antiga, mas depois juntou-se a arte contemporânea, até para reduzir custos", refere a curadora. "Depois apareceu a Leonor na minha vida e foi maravilhoso." À troca de elogios segue-se uma visita guiada pelas obras selecionadas para a exposição, emprestadas por 14 particulares e 25 instituições. Dos nacionais, como o Museu de Arte Antiga, Museu Grão Vasco ou Palácio Nacional de Queluz, aos estrangeiros, como Museu Reina Sofia e o Thyssen--Bornemisza, em Madrid, à Tate, em Londres, e ao Palais de Beaux Arts de Lille, de onde vem a mais antiga das obras que se pode ver na exposição - Vanitas, de 1535, do pintor Jan Sanders van Hemessen. "Pensei que não iam emprestar, mas autorizaram e até contaram na página do Facebook que o quadro ia sair", diz Rosa Figueiredo.
Do Outro Lado do Espelho é uma exposição em cinco núcleos: O Espelho Identitário, O Espelho Alegórico, A Mulher em Frente ao Espelho: A Projeção do Desejo, Espelhos Que Revelam e Espelhos Que Mentem e O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências. E joga com o duplo sentido da palavra reflexão, nota Leonor Nazaré. "Da imagem refletida e do pensamento." E também da palavra profundidade, a de campo e a do pensamento. Chama, por isso, a atenção para uma das derradeiras obras que se podem ver na galeria, Dois Rapazes na Fonte (1962-1975), do italiano Michelangelo Pistoletto. "É uma obra interessante para falar sobre as diferenças entre pintura e espelho." Sobre a superfície espelhada, o artista usa fotografia.
Esta obra pertence ao núcleo O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências, onde as curadoras encontram a representação do homem numa área muito dominada pelas mulheres. Duas pinturas de Columbano Bordalo Pinheiro (do Museu do Chiado e do Museu Grão Vasco, em Viseu) convivem com autorretratos de Jorge Molder, Daniel Blaufuks ou Richard Hamilton, um dos pioneiros da pop art, com a sua Mirror Image (1974).
"Quem Sou Eu?": O Espelho Identitário é o primeiro dos núcleos da exposição, abrindo com um espelho de René Lalique que habitualmente pode ser visto no Museu Gulbenkian e inclui um dos dois filmes selecionados para a exposição. Svyato (2005), do russo Victor Kossakovsky, é uma experiência do autor com o seu filho. Depois de ocultar todos os espelhos da sua casa durante dois anos, regista em filme a reação da criança, evocando a fase do espelho teorizada pelo psicanalista francês Jacques Lacan.
No diálogo com a pintura antiga, Rosa Figueiredo realça o quadro Mrs. Russell e Filho (1786-1787), do inglês George Romney, que pintou esta obra depois de ter presenciado o momento em que a senhora Russell amparava o filho enquanto este se olhava ao espelho. A pintura ficou concluída quando a criança completou 4 anos e a história está na tabela que acompanha todas as obras.
A tela pertence à coleção Roger Seeling e os atuais proprietários, conta Rosa Figueiredo, adquiriram a casa onde um dia viveu Alice Lidell, a protagonista de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, omnipresente nesta exposição, em detalhes como o coelho que se vê ao espelho na obra Who Cares, de Ana Jotta, da Coleção Caixa Geral de Depósitos, ao La Main d"Alice (1983), de Eduardo Luiz, ou Menina da Bicicleta (1942) da autoria de António Dacosta, que "é uma Alice!", exclama Rosa Figueiredo, contrariando o título oficial e chamando a atenção para a carta de jogar representada na obra incluída no núcleo Espelhos Que Revelam e Espelhos Que Mentem. Entre as peças reunidas para este núcleo estão brinquedos com espelhos, empréstimo do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra.
O Espelho Alegórico, segundo núcleo da exposição, reúne os múltiplos significados do espelho na história da arte - prudência, tempo, vaidade... - e aqui podem ser vistas obras de Ricardo Cruz-Filipe, Domingos Rego, Ana Vieira, Eduardo Luiz, Noronha da Costa.
"Para mim, a arte contemporânea vem trazer o humor à exposição", considera Rosa Figueiredo. "Nem sempre", contrapõe Leonor Nazaré, indicando a Vanitas de 1967 de Noronha da Costa que foi incluída na exposição.
"É muito visível a continuidade do espelho no tempo", afirma Penelope Curtis. "E uma boa maneira demonstrar como duas coleções - a moderna e a do fundador - falam entre elas."
Do outro lado do espelho
Museu Gulbenkian (galeria principal)
De 26 de outubro a 5 de fevereiro.
De quarta-feira a domingo, das 10.00 às 18.00. Entrada: 5 euro