"Todos os dias vou trabalhar para um sítio que adoro e pagam-me para isso"

Na sexta-feira passada, o silvicultor pôs gravata para receber em Berlim o Prémio Europa Nostra de Conservação. Inesperadamente, recebeu também o prémio atribuído pelo público. E tudo por causa da recuperação do Jardim Botânico do Palácio de Queluz, onde agora crescem ananases, maracujás, alfazemas e muitas outras plantas.

Quem passa no IC19 não faz ideia do que ali está a acontecer. Nuno Miguel Rodrigues Marques Oliveira, nascido em 1976, é desde 2008 o responsável pelos parques, jardins e floresta da Parques de Sintra - Monte da Lua. Licenciou-se no Instituto Superior de Agronomia, especializou-se em Recuperação de Jardins Históricos na Escuela Superior de Arquitectura de Madrid.

Como foi a emoção de ter ao mesmo tempo um prémio dos pares e um prémio do público?

Foi extraordinário. Para a Parques de Sintra, já era um grande momento ter o reconhecimento de um Prémio Europa Nostra na categoria Conservação, mas durante a cerimónia fomos surpreendidos com o prémio de escolha do público. Isso tem um efeito muito especial, porque trabalhamos todos os dias na recuperação do património, gostamos de ser reconhecidos pelos pares, naturalmente, mas dá-nos especial satisfação sermos reconhecidos por quem nos visita e está ao nosso lado todos os dias.

Pôs gravata?

Confesso que pus.

Tinha de ser, era uma cerimónia oficial.

O momento exigia, teve de ser.

Como foi feita a recuperação deste jardim? Como era antes?

O processo de recuperação foi muito extenso. A Parques de Sintra recebeu em 2012 para gestão o Palácio Nacional e os Jardins de Queluz e desde logo fez um levantamento sobre as prioridades de intervenção nos jardins. O Jardim Botânico sobressaiu. Aquele espaço era, então, o picadeiro de apresentações da Escola Portuguesa de Arte Equestre e estava bastante degradado, não cumpria as funções para que tinha sido desenhado. Nem era jardim botânico nem picadeiro.

Tinha sido jardim botânico?

Estamos a falar de um jardim botânico muito importante a nível nacional mas muito desconhecido do público. É um dos quatro jardins botânicos setecentistas em Portugal, a par do Parque do Monteiro-Mor, do Jardim Botânico da Ajuda e do de Coimbra. Foi construído entre 1769 e 1780 e era vocacionado para o entretenimento, aliás como são os jardins de Queluz.

Têm nomes muito engraçados: Lago da Preguiça, o Lago dos Macacos, dos Dragões, Pórtico da Fama, Horta dos Príncipes, Jogo da Pela.

Queluz tinha espaços verdadeiramente dedicados ao entretenimento.

Da família real?

Sim. Temos o jogo da pela, o jogo dos cavalinhos, o labirinto, o jogo da cabra-cega, o canal de azulejos, onde existiam umas comportas. A água subia e andavam de gôndola.

De gôndola?

Exatamente. Havia a Barraca Rica, a Casa da Música, a Casa Holandesa. É um jardim de entretenimento, à semelhança dos jardins contemporâneos com estas influências. Quem nos visita tem dificuldade em entender que jardins são e para que eram desenhados, qual o grande objetivo. A par dos processos de recuperação, temos a missão de transmitir conhecimento a quem nos visita, de abrir e explicar.

Uma pessoa chega ao Jardim Botânico e vê logo as quatro estufas de ananases. Isto não existia?

Em 2012, a Parques Sintra espoletou um processo intenso de pesquisa histórica. Percebemos que existia muita documentação sobre o Jardim Botânico e que seria possível intervir patrimonialmente. Paralelamente, percebemos que havia um conjunto de pedras e cantarias espalhadas pelos 16 hectares dos jardins, debaixo das nossas sebes extensíssimas de buxo.

À solta e não se sabia o que era?

Estavam soltas de uma forma aleatória, sem padrão, não sabíamos o que eram. Ali é que elas não podiam ficar, e portanto começámos a recolha, limpeza, catalogação, inventariação de todas aquelas cantarias. Com enorme surpresa, encontrámos as peças que constituíam - e constituem hoje - o lago central e percebemos que existiam outras peças que não compreendíamos. Começámos a fazer testes de montagem.

Um puzzle?

Começámos literalmente a montar um puzzle e percebemos que as peças eram das bases das estufas. Em 1984, o jardim foi desmantelado mas não foi feito nenhum levantamento das estruturas. Não tínhamos documentação que nos dissesse que tinha sido salvaguardado o lago central nem a cantaria das estufas. Trabalhámos um bocadinho sem rede, sem perceber muito bem o que íamos encontrar. Mas o entusiasmo começou a crescer.

Por que é que as peças tinham sido retiradas?

Acho que foi com boa intenção. Não consigo dizer qual foi o objetivo de as dispor ao longo do jardim, e se foram mexidas duas ou três vezes, porque estamos a falar de mais de 20 anos.

Na sequência das cheias de 1983?

O jardim sempre esteve sujeito a cheias. Houve cheias muito dramáticas em 1953, as grandes cheias da região de Lisboa em 1967 e depois a de 1983, que deu o golpe final ao Jardim Botânico. Mas não foi feita catalogação nem planos dos desmontes. Foi com enorme surpresa que percebemos que tínhamos duas estufas possíveis de reconstruir e pedras para fazer as outras duas. As estufas não tinham sido construídas todas ao mesmo tempo. Originalmente, no jardim setecentista, eram duas, utilizadas para acomodar plantas da América e de África, e depois outras duas para plantas asiáticas. Existem descrições de que os ananases eram plantados ali. Não tendo tido a felicidade de descobrir documentação que nos dissesse que plantas existiam em cada estufa, tomámos a opção de colocar ananases em todas.

E estão esplendorosos.

Deram-se muito bem.

Apesar de não terem os cuidados do D. Pedro III, o marido de D. Maria I?

Os ananases eram o fruto real. Não existia esta noção de fruto banal que o ananás é nos dias de hoje. No século XVII, era um fruto extraordinário, com uma forma muito esquisita, um aroma e um sabor completamente desconhecidos. Sobretudo, não era fácil de cultivar. É uma planta que veio da América Central para a Europa, fora do seu clima e das características que lhe permitem sobreviver. Existe um registo do primeiro ananás produzido na Europa, documentado num quadro em que o jardineiro real inglês o oferece ao rei Carlos II de então.

Que cerimónia!

Isto mostra a importância que o ananás tinha. Há na documentação histórica uma frase do rei D. Pedro, em Queluz, que diz que assim que o fruto real estiver em condições, amadurecido, deve ser imediatamente trazido ao seu senhor. Havia um cerco muito grande à produção e ao consumo por quem de direito.

As estufas poderão mudar de conteúdo noutra altura?

Eventualmente. Por curiosidade: os ananases cresciam numa cama de casca de carvalho das indústrias de costumes da Junqueira, cresciam bem neste solo com temperatura. No futuro, se descobrirmos documentação que nos diga o que era plantado em cada estufa, poderemos dar um passo atrás e reformular o conteúdo da plantação.

As espécies estão a começar a crescer, imagino que dentro de dois anos aquilo estará tudo enorme.

Um jardim botânico vive da sua coleção. Quem nos ouve e tem jardins percebe do que estamos a falar: quando semeamos, quando plantamos, precisamos de dar espaço e tempo para que as plantas se desenvolvam e se possam expressar. O que vemos no Jardim Botânico resulta da investigação histórica. Tivemos a ajuda do arquiteto Mário Fortes, da Direção Geral do Património Cultural, que identificou um documento precioso. É um índex de plantas produzido pelo médico da rainha D. Maria, Morais Soares, que identificou todas as plantas do Jardim Botânico. Voltámos a essa coleção histórica, falando com jardins botânicos congéneres e arranjando as plantas e as sementes. Agora é preciso deixá-las crescer e expressar-se.

É um trabalho para o futuro, com coisas que vão crescer.

A equipa da Parques de Sintra é multidisciplinar, tem arquitetos paisagistas, conservadores-restauradores, arqueólogos, engenheiros civis. Agora o grande desafio está sobretudo na equipa de jardineiros.

Quantos jardineiros tem?

Queluz tem entre dez e 15 jardineiros, é variável. É particularmente importante a qualificação de quem trabalha nos jardins. Ser jardineiro é um trabalho altamente qualificado e muito meritório. Existe a ideia de que qualquer um pode ser jardineiro. É o contrário. Nem todos se podem designar jardineiros. Ser jardineiro é uma profissão de enorme competência que necessita de muito conhecimento. Temos a felicidade de ter uma ótima equipa de jardineiros a trabalhar nos jardins do Palácio Nacional de Queluz.

E é um trabalho que exige algum afeto, não é? O orgulho, a preocupação?

Sem dúvida. Eu não poderei falar por eles mas diria que eles têm imenso orgulho. Estes prémios são catalisadores, porque geram em nós a vontade de fazer mais e melhor, e são estendidos a toda a equipa da Parques de Sintra.

A água para regas e para os lagos e as fontes é de furo ou é canalizada?

Tradicionalmente, a água era captada para os jardins de Queluz em minas e era transportada por aquedutos - o do Pendão e o da Gargantada, que atravessam Queluz. A população muitas vezes desconhece a função daquelas estruturas. Hoje, pelos constrangimentos que existem associados aos aquedutos, os cortes, as interrupções, usamos água de um furo. A água que trabalha nos lagos e nas fontes tem um sistema de recirculação. Existe uma perspetiva de poupança mas também de sustentabilidade. A água de rega vem desse mesmo furo.

Esse furo tem grande capacidade?

O furo nunca sofre com este uso de água. Mas grande parte da que seria gasta é reutilizada. Só a de rega é perdida, toda a outra é recirculada.

O Jardim de Malta está em obras e a toda a volta encontramos informação.

É o próximo projeto a ficar concluído. Tinha problemas estruturais graves e optámos pela reconstrução. Para dar informação sobre este projeto complexo, decidiu-se documentar bem toda a intervenção e explicá-la ao público. Como referiu, temos uns tapumes desenhados com conteúdos do ponto de vista histórico e da decisão do projeto. Foi um esforço enorme fazer esses painéis, teria sido mais fácil pôr uns tapumes e não pôr lá nada.

Há outros projetos para os jardins de Queluz?

Tenho colegas a concluir o projeto de recuperação da grande cascata de aparato que está no bosquete. Esse será o próximo grande projeto a ser mostrado ao público, mas a área envolvente está a ser alvo de um processo de recuperação. O bosquete de Queluz, constituído por pequenos talhões, terá muito em breve uma intervenção ao nível dos pavimentos e da vegetação.

Ainda falta muito trabalho?

Muito. Queluz esteve sem uma gestão ativa do ponto de vista do que diz respeito aos jardins, portanto temos um calendário muito exigente e dilatado.

Nasceu onde em Sintra?

Sempre vivi na zona da Estefânia e São Pedro. Tenho muito orgulho em ser sintrense, em ter nascido e crescido em Sintra. Isto cria uma relação muito especial com o espaço. Também grande parte dos jardineiros e das pessoas que trabalham na floresta é do concelho. Isto gera um apego e um amor à camisola que não existe em muitos sítios. Estes desafios para nós não são só trabalho, são mais do que isso. Vou todos os dias trabalhar para um sítio que adoro e ainda por cima pagam-me para isso.

Mas a Estefânia e São Pedro estão cheios de autocarros de turismo, aquilo está intransitável.

Sintra tem desafios associados à questão do turismo, é visível. Estamos a crescer em turismo, não só Sintra mas o país. Mas acho que Sintra está atenta a estes problemas e com a boa intenção de os resolver da melhor forma.

Que problemas tem para resolver na extensão verde que está sob a sua responsabilidade?

O projeto que tenho em mãos é muito ambicioso mas é suportado por uma equipa multidisciplinar e competente que tenho comigo e que tenho o privilégio de liderar. Como disse há pouco, temos arquitetos paisagistas, engenheiros florestais, biólogos, técnicos de informação geográfica, arquitetos. Cada um dos locais tem uma pessoa que cuida deles. Os desafios são muito grandes. Na área florestal, estamos preocupados com a questão dos incêndios, mas também a trabalhar no sentido da conservação da natureza, com um conjunto alargado de projetos desde os anfíbios aos morcegos, aos répteis, à inventariação das aranhas, a projetos de recuperação do Parque de Monserrate ou do Parque da Pena, projetos de intervenção no Convento dos Capuchos.

A recuperação do jardim pode criar novos ecossistemas, trazer novos animais?

A recuperação destes espaços é sempre feita de acordo com regras e princípios. Nós antes de intervirmos fazemos muitas vezes levantamentos de espécies que podem existir e condicionar a nossa intervenção. Fazemos levantamentos de fauna e de flora. Qualquer intervenção, do ponto de vista da conservação destes bosquetes, da própria matinha de Queluz que hoje está sob a gestão da Parques de Sintra - Monte da Lua, vai contribuir para a melhoria das condições da flora e da fauna. Estes temas casam-se bem e fazem parte desde sempre das nossas preocupações.

Quantos tipos de aranhas há ali?

Estamos a fazer um levantamento de toda essa classe, é muito difícil ainda apontar para espécies porque há pouca informação sobre aranhas. Existe muita informação sobre muitos animais, muitos invertebrados, mas sobre aranhas existe muito pouca. Estamos a tentar saber exatamente o que temos.

Têm imensos pássaros, porque há sempre uma grande chilreada.

Temos muitos e muita variedade. O último estudo que fizemos de inventariação da avifauna foi feito nas áreas onde a Parques de Sintra tem as suas propriedades, e contribuímos também para a elaboração do catálogo de aves a nível nacional. A riqueza é enorme. A nossa intenção é articular sempre estes inventários com as nossas medidas de gestão. Ou seja, saber se o que estamos a fazer contribui para a melhoria da condição destas populações. Foi este o grande objetivo. Fizemos um primeiro grande levantamento agora, esperamos repeti-lo dentro de cinco anos e perceber o resultado. É um trabalho contínuo, multifacetado, com múltiplos objetivos, e tentamos fazer o nosso melhor.

Há algum sítio que seja o seu preferido?

Eu gosto muito de Sintra, gosto muito da serra de Sintra. Atrevo-me a dizer que é dos melhores sítios para estar. Reúne um conjunto de caraterísticas únicas: temos zonas de absoluta tranquilidade, temos os jardins, temos os palácios, estamos perto do litoral, estamos perto de Lisboa, estamos no meio da natureza. Não consigo eleger um único sítio, não ia ser certeiro.

É responsável por um orçamento anual de três milhões euros?

Sim. A Parques de Sintra funciona com orçamentos plurianuais. Temos um conjunto de projetos identificados, orçamentados e propostos à administração da Parques de Sintra que tem sido determinante e fulcral, porque acredita na nossa estrutura e tem dado um apoio incondicional aos projetos sugeridos. Depois de aprovados pela administração e pelas tutelas, temos de executá-los da melhor forma. Trabalhamos com muitos projetos e com muita responsabilidade.

Os três milhões são para o conjunto dos projetos?

São para tudo. Sempre que podemos, candidatamo-nos a fundos comunitários. É importante dar nota de que em todos os investimentos feitos na Parques de Sintra, incluindo a manutenção, o dinheiro provem das receitas geradas diretamente por nós. É uma empresa pública, não tem dotação do Orçamento de Estado, tem que funcionar com as receitas que gera. É importante explicar ao público que nos visita que o dinheiro pago à entrada dos nossos monumentos tem uma aplicação direta na recuperação e na conservação do património. É um modelo sui generis, não existem muitos exemplos deste tipo de modelo e de funcionamento, mas na Parques de Sintra tem sido um caso de sucesso.

Vi nos jardins tantas árvores de fruta. Quem a come?

No início do século XX, Queluz teve nos jardins uma escola de pomicultura, para produção e cultivo de árvores de fruto. Muitos dos laranjais datam desse tempo. A Parques de Sintra tem um projeto interessante. Temos uma parceria com a Entrajuda [estrutura de apoio a instituições e solidariedade social], que, por sua vez, ajuda o Banco Alimentar, na recolha destes frescos. O Banco Alimentar funciona muito com base em produtos conservados, enlatados, massas, açúcares, mas tem sempre um défice muito grande de produtos frescos. Nas épocas certas, temos um protocolo, e tem funcionado lindamente, com a Entrajuda que traz os seus voluntários para a colheita e as laranjas são encaminhadas para o Banco Alimentar. Temos um escoamento que nos satisfaz muitíssimo. Os ananases são uma produção ainda muito tímida, mas os jardineiros neste caso têm autorização para poder consumir um ou outro, assim que eles estão preparados.

Sempre é mais bem aplicado do que a mesa do rei.

É mais democrático.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG