«A tourada é dos símbolos mais importantes da cultura portuguesa.»
A alcunha Nené tem alguma relação com o antigo futebolista do Benfica que tinha a fama de não sujar os calções? Quando foi cabo dos amadores de Alcochete era do tipo de forcado que não sujava a farda?Quando tinha 16 ou 17 anos fiz parte das camadas jovens do Grupo Desportivo de Alcochete. Jogava futebol, mal, mas os meus amigos tiveram a consideração de comparar-me ao Nené. Eu era, de facto, do género de jogador que não sujava os calções. A alcunha ficou, mais pelo carinho. Já era forcado quando tive essa experiência de bola. É difícil um forcado não sujar os calções, ou melhor dizendo a farda. Mas também os há, quando o touro lhes passa ao lado ou se desviam do touro... [risos]Como está a mobilização dos jovens para as touradas?Há muitas solicitações de muitos lados: internet, jogos, saídas à noite, mas continua a haver um legado. Não vou dizer que no meu tempo é que era bom. Basta ir ver como é hoje a vida no Grupo de Forcados Amadores de Alcochete, do qual fiz parte exactamente 25 anos. Quem vai para forcado sabe que só ali fica se honrar a jaqueta. Estão lá forcados que são filhos de antigos forcados da minha geração e é como se estivesse a assistir a uma reedição do meu tempo. Ainda no dia 18 de Junho tivemos uma confraternização com miúdos dos 9 aos 16 anos. Foi uma praga de miúdos que fiquei banzado e de boca aberta. O actual cabo está a fazer a política que já se fazia antigamente. Está a mobilizar os jovens para irem para a frente.Há uma linguagem aparentada com a dos combatentes, como quem vai para a frente de batalha?Bem, o touro é um animal de combate. Enveredar pela modalidade de forcado amador obriga a ser combativo. Gostava de salientar que esta modalidade taurina, do forcado, é uma coisa muito nossa. É dos símbolos mais importantes da Nação chamada Portugal e da cultura portuguesa que é a corrida de touros. O reconhecimento da corrida como marco cultural pelo Ministério da Cultura foi uma grande vitória para as hostes taurinas. Mas não é preciso nenhum político dar a cara pelos touros para se saber como este país vive a tourada. A sociedade não está dividida sobre a questão dos touros?As sondagens que já se fizeram pela Associação Portuguesa de Empresários Tauromáquicos deu como prova evidente que há apenas uma curta minoria (três por cento) que não gosta de touradas. Há os indiferentes e (quarenta, cinquenta por cento) há os que gostam. É sintomático que quase metade da população simpatize com a festa brava. Não se trata de adeptos ferrenhos, mas de pessoas que gostam do espectáculo. Não me parece nada de extraordinário, apenas simbologias da nossa cultura. Se for ao Alentejo, uma zona histórica de agricultura e criação de touros, onde as gentes estão habituadas a lidar com o gado, tanto bravo como manso, tanto bovino como ovino, é impossível que não se goste de touros. Além do mais, existem «n» pessoas ligadas ao maneio do touro bravo que além de o criarem são amigas do animal. Volta e meia quer-se especular sobre os pobrezinhos dos animais que vão ser torturados para as arenas, mas isso não tem fundamento. Quem anda nas touradas é porque gosta dos touros.Quem lhe passou a afición? Veio pelo ADN ou é de geração espontânea?Foi numa daquelas conversas ao serão em casa dos meus avós paternos, em Alcochete. Segundo reza a história de família, houve um tio paterno, que não conheci, que faleceu com uma perfuração na pleura a tentar cernelhar um touro. Aqui em Alcochete fala-se quase 24 horas por dia de touros, e quase sempre de touros e forcados. Um dia, a minha avó ofereceu-me o barrete do meu tio e pronto. Fiquei com o barrete na mão, a tremer e a sentir a responsabilidade de continuar o trabalho do meu tio. Sempre me alegraram as largadas nas festas, as ruas cheias de gente a ver o touro. Faz parte dos nossos hábitos, não só de Alcochete, mas de toda a Estremadura. Posso dizer que tenho um filho de 14 anos que já pega novilhos. Há todo um ritual de iniciação. Mas, como se diz aqui na minha terra, vale mais quem quer do que quem pode. Quem gosta e quer, mesmo não podendo, consegue ser melhor ou pior forcado. Onde há corridas estão lá os miúdos. Querem ir para o campo ver touros. É uma cegueira doida mas saudável pelo amor à festa dos touros, que a mim, como português, me dá muito gozo.Qual foi a sua maior gratificação enquanto forcado? A aprendizagem dos valores da vida. Para mim, entre os maiores, a camaradagem, a entreajuda. Aprendi o que é ser um bom condutor de homens. O primeiro cabo que tive em Alcochete ensinou-me a fazer uma escola de vida, de valorização dos jovens como seres humanos. A maior gratificação foi poder pertencer a essa escola, tanto chefiado como a chefiar. Aquela mística de envolvimento, de amizade, de fazermos uns pelos outros. É também uma coisa irracional, bruta. Mas o resultado foi um curso de saber estar bem na vida.O que fez na vida antes de se tornar empresário e apoderado (agente) de toureiros, dos quais o mais recente é João Salgueiro?Fiz o primeiro ano de Direito mas depois esqueci-me [risos]. Fui forcado, que não é trabalho pago mas é ofício, e depois fiz-me empresário e apoderado. Cheguei a ter as três funções na mesma corrida. Fui funcionário público mas a paixão pelos touros falou mais alto. Infelizmente, sou o empresário mais antigo... desde 1981.Há alguma comparação entre pegar um touro pelos cornos e enfrentar uma crise como a que atravessamos?É mais fácil enfrentar o touro do que resolver qualquer crise económica ou de subsidiodependência como as que existem neste país. Mas também lhe digo que se os nossos responsáveis tivessem a coragem e a lucidez de um forcado, Portugal não estaria como está.Já agora, o que lhe passava pela cabeça no instante que antecedia a pega?Dou um passo mais atrás. Quando saía de casa com a malinha para me fardar e saber que ia voluntariamente jogar a vida. Há sempre esse risco. No momento de vestir a farda há sempre um sentimento de medo. Não há ninguém que tenha enfrentado um touro a pé ou a cavalo que não tenha sentido medo. Não há tarzans nem super-homens. Nesse momento de ir a caminho da praça acabam-se todos os problemas. Quando saltamos para a arena e começamos a bater palmas ao touro, e sabendo que é a nós que cabe pegá-lo, não há mais pensamentos do que o da sobrevivência. Por mais tauromaquia que tenhamos no corpo. Depois, não somos pessoas do «nim». O forcado nunca recua.Como está o negócio dos touros em Portugal? Está como tudo ou quase tudo. Há uma recessãozinha, ao nível dos cerca de dois por cento de perdas financeiras, mas o aficionado não deixou de ir aos touros. Baixaram-se os preços, para que as pessoas não se sintam desmotivadas. É claro que continua a haver corridas com mais ou menos qualidade. E se calhar, neste momento, as opções estão a passar por aí, por escolher as melhores corridas. E está na corrida quem fizer melhor. Continuo, felizmente, a ter as minhas praças quase sempre cheias. Nisso, podemos dizer que estamos todos no mesmo barco, empresários, toureiros, forcados... todos empenhados para que a festa continue a singrar, em prol da cultura portuguesa.Há clubismo na tauromaquia, como no futebol?Obviamente que há rivalidades, mas neste momento, nem que seja pela recessão que é uma realidade, temos de estar todos focados na mesma solução. Não é o salve-se quem puder. Se houver maus espectáculos, e os aficionados andarem desgostosos, todos apanham por tabela. Queremos todos fazer bons espectáculos. Há é estilos diferentes de gerir. O seu segredo diz-se que tem sido apostar no touro. É aqui que continua?Sim, a minha empresa tem uma bandeira que é o touro, a sua apresentação, a sua idade. Para que você esteja na bancada, mesmo que seja a primeira vez que vai a uma corrida de touros, e sinta que tudo foi feito para ter o melhor resultado. Que o toureiro se aplica e não está a lidar uma «criança», ou seja um tourito. Na bancada tem de haver um momento de emoção e adrenalina equiparado ao da arena, e que as pessoas saiam do espectáculo maravilhadas. Para quem nunca veio antes saia com vontade de voltar e entender melhor que as touradas estão muito para lá do espírito do momento, que têm uma filosofia de vida antiquíssima. Mas o meu objectivo é o touro. Sem touros de excelência não há bons espectáculos. O espectador sente-se defraudado.As grandes marcas, que patrocinam o futebol, estão desinteressadas da tauromaquia?Há algumas grandes marcas que deixaram de estar nas touradas. Mas está a ser feito um grande trabalho pela Associação Portuguesa dos Empresários Tauromáquicos, juntamente com outras associações - de toureiros, forcados, criadores de touros de lide - para criar uma associação, a Protoiro, que tem como objectivo principal a defesa dos touros, que são os protagonistas da festa. É preciso que se perceba a nossa importância nas dinâmicas culturais. O trabalho que se está a fazer, estou certo, vai trazer essas marcas de volta aos touros. O seu caminho tem sido contra a corrente recessiva: expandiu a sua área de gestão de praças, gere sete espalhadas pelo país. Vai continuar a expandir o negócio?Tenho seguido o caminho que aprendi na escola de forcados que é seguir em frente. A motivação é a de sempre: fazer com gosto e não fazer nada contrariado. Embora a minha empresa seja a mais antiga em actividade, cada dia que venho para o trabalho é como se fosse o primeiro. Enquanto estiver no negócio, o meu maior empenho é a defesa intransigente das corridas de touros e da afición. De resto, é um negócio como outro qualquer que tem dias compensadores e outros não. A paixão é o que me move. Como costumo dizer, sou católico até que Deus queira. O facto de qualquer pessoa poder organizar uma corrida, ou seja, não ser preciso alvará nem experiência prévia, contribui para estragar a tourada?De facto, para organizar uma corrida não é preciso mais do que ter uma empresa. Registamo-nos no Instituto Geral de Actividades Económicas, somos empresários e fazemos a corrida. Agora, ao fim de trinta anos de actividade, sou capaz de concordar que se fazem coisas pobres. Mas quando apareci também eu era pardal do telhado. Manuel dos Santos ou Américo Pena também deviam olhar para mim a pensar o mesmo. De resto, aprendi muito com esses senhores. Mas há um critério de primeira, segunda e terceira provas. Há praças fixas e desmontáveis. E o negócio tem de ser livre para bem do próprio negócio. O tempo faz a selecção.Continua a abastecer-se nas ganadarias espanholas?Tenho-me abastecido quanto baste. A matéria-prima em Portugal está um bocado escassa. E para mim, que quero touros com apresentação, não hesito em ir comprá-los onde são de qualidade. Mas 75 por cento dos meus touros são de cá. É conhecido pelo seu espírito crítico no panorama do toureio. Enquanto olheiro acha que há algum promitente «Cristiano Ronaldo» do toureio a cavalo ou a pé?Há sempre Ronaldos e Messis. Talvez estejamos a passar por uma fase menos positiva no toureio a pé. Na forcadagem talvez estejamos mais bem servidos neste momento. No toureio a cavalo está a despontar uma nova geração de jovens que têm todas as condições para terem esse estatuto de estrelas. São filhos de grandes toureiros, podem ir buscar o sumo aos pais. Está a pensar em João Salgueiro?Por exemplo. É o número um do toureio a cavalo mundial.Então, nesse caso não estamos carentes de grandes figuras, como um Manuel dos Santos ou um Diamantino Viseu, a pé, ou um José Mestre Baptista a cavalo?E outros tantos... o José Luís Gonçalves, que faz parte de uma escola de toureio. O Vítor Mendes que também está a criar futuros grandes nomes. Mas é bom que se diga que hoje há muito mais corridas. As praças desmontáveis levaram a corrida onde ela nunca iria. Por outro lado, não impedem que o aficionado venha às praças de alvenaria. Há também uma espécie de 1.ª Liga e Liga de Honra. Os espectáculos não são formados só com cavaleiros de uma divisão. Mas há sempre um padrão de qualidade.Dos cavaleiros que apoderou ou conheceu, quais foram os mais memoráveis?O José Mestre Baptista foi um deles, seguramente. Foi meu apoderado. Aprendi com todos. Neste momento aprendo coisas lindas sobre a pureza do toureio a cavalo em Portugal. É uma herança que vem do tempo do Mestre Baptista. Mas de todas as emoções, as mais importantes vivi-as como empresário. Sou o primeiro a viver o espectáculo, o primeiro a pô-lo na rua, a idealizá-lo, a senti-lo. É como a mãe que vai ter a criança. Estamos a falar de que grandeza de espectadores?Não lhe sei precisar o número, mas somos o segundo espectáculo, a seguir ao futebol. Não temos ainda a máquina, mas estamos a trabalhar para que ela exista, de televisão em canal fechado e jornais próprios, para que se torne um espectáculo de maior alcance.Os cavalos estão entre as suas grandes paixões...A história que se conta é que disse ao meu avô que queria ser cavaleiro porque sempre gostei muito de cavalos. Ele respondeu-me que cavaleiro não, o mais que podia ser era forcado, como o meu tio. A razão, segundo ele, é que o forcado só leva porrada do touro, enquanto o cavaleiro leva porrada do touro e do cavalo, porque sustentar um cavalo não é para todos. Não sou criador, tenho cavalos só para brincar. Só tive um cavalo que andou a tourear, montado pelo Pedro Salvador. Chama-se Damasco.Sente-se uma espécie de cavaleiro solitário no negócio da tauromaquia?Não diria isso assim. Há um compromisso entre empresários pela qualidade do espectáculo, mesmo sendo rivais de negócio. Estou a falar de românticos como eu, que andam nisto pela paixão. Enquanto espectador é a ver pegas que sente as maiores emoções?Dá-me uma certa nostalgia ver as cortesias, os fardamentos, o ritual. Talvez tenha sido das coisas mais importantes que fiz na vida. A coisa de que mais gosto é citar e desafiar um toiro para a luta, para o abraçar. Receber o aplauso da bancada no final de uma grande pega é uma emoção indizível. DecanoAntónio Manuel de Oliveira Cardoso nasceu há 57 anos em Alcochete, onde viveu até ir para a escola. Mudou-se para Lisboa com os pais e estudou até ao primeiro ano de Direito. Foi nadador do Sport Algés e Dafundo e futebolista nas camadas jovens do Grupo Desportivo de Alcochete. Em 1971 tornou-se forcado e em 1981 dedicou-se à actividade de empresário tauromáquico. Dois anos depois tornou-se apoderado pela primeira vez. No dia 31 de Agosto de 1995 despediu-se do Grupo de Forcados Amadores de Alcochete, do qual foi cabo durante 11 anos. Hoje é o empresário tauromáquico mais antigo do país e apoderado do cavaleiro João Salgueiro. Alta patenteA notícia chegou sem cerimónia, em Abril de 1984. «Vais passar a primeiro-cabo», disse-lhe o cabo cessante do Grupo de Forcados de Alcochete. «Foi um momento histórico. Melhor do que se tivesse sido eleito presidente da República», recorda António Manuel Cardoso. A primeira pega na condição de cabo-líder ganhou contornos épicos. «Senti tanto a responsabilidade que tremia como quando recebi o barrete do meu tio.» Há um ritual quando se sai do grupo, em que o forcado despe a jaqueta. É como despir a camisola ou tirar a braçadeira de capitão da equipa. O cabo que se vai embora pega o touro e despe a jaqueta. Quem a recebe é o forcado seguinte, empossado na nova função. «Tudo aquilo parecia uma tomada de posse.» Nené é contido na vaidade e no orgulho, mas das muitas centenas de pegas que se lhe conhecem no currículo «só não conseguiu pegar cinco toiros».