«A minha vida tem sido uma aventura incrível, incrível, incrível.»

<div>Futre foi o primeiro «menino de ouro» do futebol português na alta-roda europeia, o primeiro a ganhar uma Taça do Rei em Espanha, a jogar na Primeira Liga inglesa e no Milan. Tem histórias mirabolantes com Pinto da Costa, Gil y Gil, Bernard Tapie e Berlusconi. A rábula do chinês, na campanha de Dias Ferreira para a presidência do Sporting valeu-lhe uma renovada popularidade: do YouTube aos outdoors, passando pelas televisões, todos copiam o «estou concentradíssimo». Esta terça-feira lança a sua biografia.</div> <div> </div>
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Lança na próxima semana El Portugués. Quando é que começou a pensar neste livro?Há cerca de dois anos, quando o Cristiano Ronaldo partiu o vidro do carro de um fotógrafo que o importunou. Nessa altura apeteceu-me dizer qualquer coisa a quem começa agora. Ao mesmo tempo, o Luís Aguilar veio falar comigo dizendo que gostava de fazer a minha biografia. É um escritor jovem, muito talentoso e um grande amigo. Combinámos fazer, desde logo, uma biografia diferente, pensámos num livro honesto, muito directo. E foi isso que fizemos.Que resumo faz da sua carreira e da sua vida?Até agora tem sido uma aventura incrível, incrível, incrível. Fui um jogador criativo e corajoso, numa altura em que não era fácil ser corajoso. Sobretudo em Espanha, onde havia autênticos «assassinos». Na minha equipa tinha três. Por exemplo, o Andoni Goikoetxea, que lesionou o Maradona. Quando corria até a relva abanava e, ao contrário do que acontecia no FC Porto, onde era obrigatório usar caneleiras nos treinos, em Espanha fazer isso era uma vergonha. Nem as meias podiam estar subidas. Conheci pessoas que marcaram a minha vida. Presidentes, companheiros, vivi situações únicas. Tem sido uma boa vida. Dedico o livro aos meus dois filhos, à mãe deles que é a minha melhor amiga, aos meus pais e a dois grandes amigos, um deles já desaparecido, as pessoas da minha vida sem as quais não havia talento nem futebol que me salvassem.O primeiro capítulo do livro chama-se «Da gravata para as chuteiras».Começa ao contrário. Esse capítulo fala do momento mais forte da minha vida profissional porque encerra todas as emoções. Já estava retirado do futebol há seis meses, era já embaixador do Atlético de Madrid, dava os primeiros passos como director desportivo, cargo que viria a ocupar mais tarde, quando durante um treino da equipa sou convidado pelo treinador - o Radomir Antic - para substituir em campo um atleta lesionado. Disse-lhe que devia estar louco, que não treinava há muito tempo, que fumava desalmadamente, mas ele insistiu e fiz o treino. «Português, tens de voltar a jogar», disse-me no final.No dia seguinte, os jornais falavam do treino, diziam que o espectáculo voltara ao Estádio Vicente Calderón e eu, não escondo, estava muito tentado. Aceitei voltar a vestir a camisola, apesar de todos os riscos que isso implicava. O livro começa com esse momento: o estádio onde já não jogo há quatro anos está cheio, Gil y Gil discursa mas os adeptos gritam o meu nome, uma loucura. Tenho de ir falar, dizer-lhes que tinha muitas saudades deles. Juntei naquele momento todas as emoções que vivi ao longo da carreira no futebol. Mas neste capítulo falo também de outro momento emocionante: a conferência de imprensa em que anunciei o fim da minha carreira. Coloquei uma chuteiras em cima da mesa, as chuteiras com as quais fui campeão europeu em Viena e foi a olhar para elas que me despedi.Antic convida-o a regressar e depois é ele quem o afasta, de novo. «A partir de certa altura começou a roubar-me moral», acusa no livro.Também por isso escolhi aquele momento para iniciar o livro. Ele queria tirar da equipa quatro jogadores que foram vistos numa discoteca. Aquilo mexeu comigo porque todos nós tínhamos feito o mesmo - eu também tinha estado a beber até às três da manhã. E disse-lhe: ou afastava todos ou não afastava nenhum e ele não aceitou que eu lhe dissesse isso. O filho de Gil y Gil acabou por intervir e Antic nunca mais me perdoou.Começou a jogar à bola com um nome que não era o seu: Rogério Paulo Viegas Alves. Começa aí a história de Paulo Futre.Tive de decorar o nome e comecei logo fora das regras. O Sporting organizava anualmente um torneio para crianças entre os 10 e os 13 anos. No Montijo, organizámos uma equipa, o meu pai era o treinador e eu queria jogar mas só tinha 9 anos. Portanto, convenci o meu pai a inscrever-me com o BI do Ginja. A nossa equipa ganhou o Torneio e o Aurélio Pereira quis falar comigo mas eu dei à sola porque ele ia descobrir rapidamente que eu não era o Rogério. No ano seguinte, entrei com o meu verdadeiro nome. Nessa altura o Aurélio Pereira falou com o meu pai mas ele não me deixou ficar no Sporting porque era muito miúdo.Depois do Torneio de Rocheville de sub 11, o Sporting voltou a insistir.A televisão e os jornais começaram a anunciar esse torneio e eu inscrevi-me. No primeiro treino de captação estavam uns trezentos miúdos e na última fase de selecção eram mais de quinhentos, de todo o país, uma loucura. Fui passando as eliminatórias e não só fiquei entre os 16 seleccionados como fui escolhido para capitão de equipa. Estava a viver o sonho americano: andei pela primeira vez de avião, fui considerado o melhor jogador do torneio, diverti-me muito e estava feliz. Mal cheguei a Lisboa, o Aurélio Pereira voltou a insistir com o meu pai, que desta vez cedeu. O primeiro contacto com os outros miúdos do Sporting não foi fácil. Era o forasteiro da equipa. Era tímido, ficava no meu canto. Mas como no meu primeiro jogo marquei sete golitos, pronto, fui rapidamente integrado pelo grupo. Tinha até uma tarefa que era a de despachar os meninos que os directores queriam meter à força na equipa e que não tinham jeito nenhum para aquilo. Começou por ser a pedido do Aurélio Pereira mas depois já era eu quem me oferecia: «Este é para despachar ou não?» Fazia-lhes cada finta que até ficavam agarrados ao chão. E o Aurélio dizia aos directores: «Está a ver, o miúdo não tem jeito.»É em Rocheville que se apercebe do seu talento?Em Rocheville percebi que era um bocadinho melhor do que os outros e que talvez fosse por isso que me escolhiam para capitão.Já fumava com onze anos?Comecei com 12. E foi por causa do barco. Passava duas horas por dia no barco de uma banda para a outra do Tejo. E para matar o tempo comecei a fumar. Por vezes, depois de apagar o cigarro começava o aquecimento ainda no barco.Essas viagens de barco marcaram-no - fala várias vezes delas no livro.Conto a história dos vários temporais. Por vezes, os barcos nem podiam sair e dormia na estação, em cima das cadeiras. Apanhei sustos tão grandes que mal pude deixei de andar de barco. Nunca mais. Nem de iate. Nunca mais entrei num barco e sei nadar desde miúdo. Mas o medo foi tanto...No ano seguinte, com 13 anos, chumbou por faltas e deixou a escola.Com 13 anos já trabalhava. As convocatórias eram lindas. Fulano de tal, estudante, fulano de tal, estudante, e iam por ali fora. E às tantas, Paulo Futre, extremo-esquerdo, bate-chapas. Não me importava nada.Fala muito sobre o primeiro autógrafo e de como treinava no barco várias assinaturas. «A humildade, em muitos casos, é a primeira coisa que deixa de existir.»No livro dou ao primeiro autógrafo o valor de um gesto simbólico. A maioria dos que aos 16/17 anos dão o primeiro autógrafo não consegue sobreviver ao momento. Esses miúdos estão mais do que perdoados porque não é fácil lidar com a fama. Não sei porquê, a minha cabeça ficou sempre igual. Talvez até tenha ficado mais modesto. Tenho a certeza de que o primeiro autógrafo não mudou o meu carácter. Por sorte e talvez por algo que herdei dos meus pais.Ainda hoje o seu pai vive na casa em que ele e os filhos nasceram.E a minha mãe só saiu de lá quando o Alzheimer a obrigou a isso. Um dia, já jogador do Atlético de Madrid, perguntei aos dois se queriam um castelo. Olharam para mim e encolheram os ombros como se eu fosse maluquinho. Viveram lá comigo no maior conforto mas ao fim de cinco ou seis meses percebi que já estavam a fazer um esforço. Não eram felizes ali. Entendi e sempre respeitei. Eles queriam ver-me bem, visitar-me, falar comigo diariamente pelo telefone mas também que os deixasse estar no Montijo, na calma deles e na casa onde sempre foram felizes.Ainda no Sporting, com 18 anos, foi convocado para uma selecção do mundo. E garantiu ao seleccionador Telê Santana que jogava a lateral-esquerdo e até a central.E a lateral-direito. Isso prova o quanto eu tinha vontade de jogar. Nunca na minha vida tinha jogado a central mas percebi que era a única maneira de entrar no jogo. Sem saber como - ou melhor, por uma cunha de João Rocha - vi-me com 18 anos na selecção do mundo. Dormi no Hilton em Nova Iorque e, no dia seguinte, ia jogar com Beckenbauer, Ruud Krol, Shilton, enfim, com o topo, no estádio do Cosmos. A meio do jogo, o seleccionador perguntou-me se jogava à defesa e eu, claro, sim senhor. Mas sempre que me via com a bola nós pés ia por ali fora ou seja, acabámos por sofrer um golo. O Beckenbauer e o Krol já estavam fartos e vieram discutir comigo, aos gritos. Mas eu não me fiquei: «Eu no defense. Attack, ok? Attack.» Três anos depois, campeão europeu, falei nisto a Beckenbauer e ele lembrava-se do miúdo reguila e do «eu no defense».A determinada altura conta a razão que o levou ao FC Porto. Não chegou a pedir directamente a João Rocha um aumento...Não. Foi através de um director e há até uma versão segundo a qual João Rocha nunca terá sabido do meu pedido, uma vez que esse director estaria convencido de que eu estava a fazer bluff. Não sei. Sei que na altura estava a viver o pior momento da minha vida, o Sporting queria emprestar-me à Académica, eu não aceitava isso e pedi até um valor inferior ao que o FC Porto me propunha - 18 mil em três anos contra 27 mil do FC Porto com casa e carro - mas a resposta do presidente, de acordo com esse responsável, foi que eu devia estar louco. Nessa noite fui para o Porto.Nunca desfez essa dúvida com João Rocha?Nunca.Afirma no livro que o balneário do FC Porto foi um teste muito difícil: «No Sul passei a ser um traidor; no Norte um forasteiro indesejado», conta no livro.Terrível. Por ter trocado o Sporting pelo FC Porto os meus pais passaram um mau bocado no Montijo e eu também não tive a vida facilitada nem na cidade do Porto nem no clube. O Inácio ajudava-me mas pedia-me para evitar falar com ele diante dos outros, não fossem pensar que formávamos um grupinho. O meu sonho era poder participar nos almoços de sexta-feira reservados apenas aos jogadores do Norte, ou seja, noventa e tal por cento do plantel. E consegui. Fui o primeiro «estrangeiro» a receber um convite para esses almoços, e levei alguns companheiros, como o Laureta e o Madjer.Considera Madjer o jogador mais completo que conheceu. Porquê?Sem dúvida. Ele fazia o chamado elástico com o exterior dos dois pés. Eu, que tinha o tal pé esquerdo de ouro e fazia com o pé o que fazia com a mão, só conseguia fazer o movimento interior, para dentro, e treinava horas a fio. Ele fazia o movimento exterior com os dois pés e sempre na perfeição. Além disso, era polivalente. Jogava a ponta-de-lança, nas alas, onde fosse preciso. E no «um contra um» era imbatível.Foi muito controlado no FC Porto, sobretudo por Octávio Machado. Chamava-lhe «cão de guarda».Tive alguns problemas com o Octávio, era um chato mas estou-lhe agradecido. À noite, tocava à minha porta para confirmar se eu estava em casa, nas deslocações a Lisboa, com medo de que os empregados do hotel pudessem estar feitos com outros clubes, trocava sempre as refeições que me estavam destinadas, era um controlador. Quando o caso era mais grave passava do Octávio para o Artur Jorge e quando era muito grave passava do treinador para o presidente. Comigo isso chegou a acontecer. Com 20 anos eu já era líder do FC Porto mas era rebelde.Com Pinto da Costa tenho mil histórias mas lembro-me da primeira, quando ele me disse ao telefone: «Paulinho, não te querem aí (no Sporting) mas aqui, comigo, vais ser tu e mais dez.» Eu nem queria acreditar no que estava a ouvir. Disse-me a mesma coisa no dia em que assinei pelo FC Porto. O Pinto da Costa foi uma das pessoas mais importantes da minha carreira e gostava muito de o ter ao meu lado na apresentação do meu livro no Porto. Com ele, Artur Jorge, Octávio e João Mota e uma equipa fantástica fui campeão da Europa. Lembro-me do discurso do Artur Jorge no balneário ao intervalo: «Isto não é um sonho. Está a acontecer.»O FC Porto arranja uma espia. Fala dela num capítulo a que chama «Mulheres».Mais uma vez o controlo. Sempre que eu pisava o risco eles sabiam. Às tantas comecei a desconfiar. E percebi que essa mulher, bastante mais velha do que eu, era a informadora. Fiquei muito decepcionado e zangado porque confiava nela. Nunca mais a quis ver. Mas no FC Porto aprendi a moderar-me. Os cigarros, por exemplo: à terça comprava um maço e deitava oito cigarros fora. Sabia que só podia fumar doze e ia reduzindo até domingo, dia do jogo. Nesse dia, antes do jogo, só fumava um. Depois do jogo, todos. Segunda, todos mas na terça voltava ao mesmo. Com o sexo, a mesma coisa. Quatro vezes por semana bastava e nunca na véspera ou antevéspera do jogo.Ainda no Porto conhece a sua ex-mulher. No livro lembra as críticas de que foram alvo por terem vivido sempre em união de facto.Tivemos muitas pressões da Igreja. Em 1986 não era fácil viver em união de facto. Mas muitas mais tive depois de ter sido pai. Nessa altura, a Igreja chegou a acusar-me de ser um mau exemplo. Na altura era um crime. No Atlético era o único jogador naquelas circunstâncias. Os jornalistas sempre a insistir na pergunta do casamento. E nós sempre a dizer o mesmo. Sempre dissemos que não precisávamos de uma igreja para sermos felizes.Apesar da separação, a mãe dos meus filhos é a minha maior amiga e foi muitas vezes cúmplice das minhas maluquices. Nesta, por exemplo: antes de ir para o Japão estive para assinar pela Portuguesa dos Desportos mas ao fim de três dias no Brasil percebi que a pressão era muita e eu já não tinha disposição para aguentar aquilo. E portanto, como nada estava assinado, pus-me a pensar numa desculpa para sair dali sem prejudicar a minha imagem em Portugal e Espanha. Lembrei-me que se a Isabel fosse internada eu teria uma desculpa para regressar a Espanha. Ela alinhou. Ainda hoje o médico do Atlético desconhece que a dor de barriga da Isabel era falsa. A verdade é que me safei.Entretanto, entram no filme Gil y Gil, candidato à presidência do Atlético de Madrid, e um Porsche amarelo. Porquê amarelo?Quando aparece o Gil, que era candidato a presidente do Atlético de Madrid, já tínhamos - eu e o FC Porto - um pássaro na mão, que era a negociação com o Inter. Davam menos dinheiro mas era seguro. Este Gil y Gil era um desconhecido que ainda por cima tinha aceitado todas as condições, as minhas e as do FC Porto. Pedi uma casa, um Porsche e sempre tudo bem. Desconfiando, disse logo que queria o carro antes das eleições e até me arrependi de não ter pedido um Ferrari, que ele estava por tudo. Vou com o Gil e o Pinto da Costa para Madrid. No avião, o Gil adormece e eu digo a Pinto da Costa que estou cheio de medo. Não conhecíamos o homem de lado nenhum e, se perdesse as eleições, desaparecia e nós ficávamos a ver navios. O Pinto da Costa estava optimista e dizia que ele ia ganhar. Já em Madrid, vou imediatamente buscar o carro. Mas só havia um para entrega e era amarelo. Nunca até ali tinha visto um carro amarelo canário mas mais valia ter um amarelo do que não ter nenhum. Foi logo para o Montijo. E o Pinto da Costa, a gozar: «Paulinho, o carro é mesmo muito bonito.»Gil y Gil ganhou as eleições e a sua relação com o presidente e o clube enche grande parte do livro.Foi uma relação muito forte. Vivi momentos inesquecíveis. A homenagem em que o clube me atribui a insígnia de ouro e brilhantes, na presença de cinquenta mil pessoas, o momento em que subi à tribuna para receber a taça das mãos do rei, depois de ter feito um grande jogo contra o Real Madrid, os grandes jogos que fiz naquele estádio. Na minha carreira faltou-me ser campeão de Espanha e vencer uma prova com a camisola da selecção nacional. Mas foram anos maravilhosos.Quando chega a Madrid, um dos funcionários do clube avisa-o do perigo que é andar no centro da cidade entre as sete e as dez da manhã por causa da ETA.A ETA assustava-me muito, sobretudo quando, em 1991, alguns elementos da organização foram detidos em Portugal. Para impedir a extradição, a ETA ameaçou Portugal e os portugueses espalhados pelo mundo passaram a alvos. Eu era o português mais mediático de Espanha e a embaixada portuguesa contactou-me para me disponibilizar protecção policial. Agradeci mas recusei porque já tinha tratado disso. O medo da ETA foi a pior consequência da fama. Mas houve outras.Por exemplo, a história da «mulher dos milhões»?Por exemplo. Quando aconteceu já eu era uma das figuras mais mediáticas do campeonato espanhol. Quando cheguei a Madrid ouvi falar em esquemas de prostituição de luxo, mulheres e homens. Quem tivesse dinheiro, comprava uma noite de sexo com desportistas, estrelas de televisão, actores. Constava que muitos jogadores de futebol tinham sido gigolôs. Um dia sou abordado por uma rapariga que me disse representar uma mulher que queria a minha companhia e que me oferecia vinte milhões de pesetas, e eu sempre a recusar. Até que um dia aceitei conhecer a senhora. Foi o filho quem há uns anos me deu a notícia da sua morte. O resto guardo para o livro.Nunca bateu num paparazzo?Eu não, mas um amigo meu deu um murraço a um, certa vez. Não fui a tempo de evitar.«Se Futre fosse minha mulher, seria minha amante», disse um dia Gil y Gil.Foi sempre uma relação de amor-ódio e no ódio era um inimigo terrível. Quando quis despedir Javier Clemente disse-lhe que estava a cometer um erro. Chamou-me «português de merda» e despediu o homem. Eu retaliei e comecei a inventar indisposições que me impediam de treinar. Ele começou a virar os adeptos contra mim, a ponto de me fazerem ameaças por telefone. Numa dessas guerras, só não regressei a Portugal porque um amigo me pediu em nome dos filhos para não o fazer.Mas uma das mais violentas discussões foi a última, na rádio Marca, em directo, quando ele anunciou que ia contratar jogadores que eu, director desportivo, não queria. Essa discussão fez parte de um filme, Días de Fútbol, que teve sucesso em Espanha. Foi de filho da mãe para cima, em directo. Entre nós, a agressividade verbal chegava onde fosse preciso. Era intempestivo e fazia um santo perder a calma. Um dia evitei que o Ivic lhe atirasse uma cadeira à cabeça... Mas peguei-lhe no caixão. Ele partiu no dia em que regressei a Madrid e houve quem dissesse que ele esteve à minha espera para partir.Como jogador também ia matando Ivic.Sim, reconheço que o senhor ia tendo um ataque. Foi durante um jogo - ele queria substituir-me e eu, de dentro de campo, dizia que não saía. Ele insista e eu repetia: «Não, escolhe outro.» No fim, atira-me o Gil, «foi a última que fizeste, ouviste?» Não foi, claro. Travei muitas guerras, muitas delas em defesa dos meus companheiros, as maiores delas com Gil. Mas penso que parte do reconhecimento que mereço aos espanhóis vem daí - de eu ter sido o único que afrontou Gil y Gil, sempre com lealdade. O Gil e outros. No West Ham enfrentei o presidente e recusei entrar em campo quando vi que ele estava a faltar à cláusula do meu contrato que obrigava o clube a dar-me a camisola 10. E eles acabaram por cumprir o que estava escrito. E ainda consegui levar para lá o Porfírio.Gil teve muitos problemas com a justiça. Alguns jogadores tiveram problemas porque investiram em Marbella. Como é que, sendo tão próximo dele, escapou sempre a esses negócios?É uma pergunta que faço algumas vezes a mim mesmo. Mas sempre que ele me aconselhava a investir em Marbella, a minha resposta era pronta: «Presidente, eu é mais Montijo.»Passou por quatro presidentes polémicos - Pinto da Costa, Gil y Gil, Bernard Tapie e Berlusconi.Tapie era um líder. Há uma coisa que não conto no livro e que é esta: umas duas horas antes dos jogos, o treinador fazia a palestra, explicava os pontos fortes e fracos da outra equipa e nós lá o íamos ouvindo, relaxadamente. Até que entrava o Tapie. Tirava o casaco, a gravata e pá, pá, pá - explicava exactamente como tínhamos de jogar. E nós em sentido. Era um líder que percebia muito de futebol. Quando rebentou o escândalo e já não ia ao estádio fazia as substituições por telefone. Poucos conhecerão esta faceta dele. Passei, de facto, por presidentes carismáticos. Ressalto a inteligência de Pinto da Costa, a energia e frontalidade de Gil, a capacidade de liderança de Tapie e o cavalheirismo de Berlusconi. Quando jogava no Milan, apanhou-me no meio de um escândalo e só me fez uma pergunta, com toda a calma: «O que se passa, Paulo, é verdade?» Era outra caldeirada que descrevo no capítulo de que mais gosto. O da tropa.Um caso que chegou a Mário Soares.A história começa quando eu tinha 20 anos, em Abril de 1986. Fiz a inspecção em Setúbal, fiquei apto e tinha de me apresentar em Maio do ano seguinte no quartel de Castelo Branco. Só de pensar que me iam cortar o cabelo até tremia. Isto para além da interrupção da carreira... Pinto da Costa conseguiu adiar a minha entrada para Setembro mas em Junho vou para o Atlético de Madrid. Ninguém do Atlético tinha perguntado pela tropa e eu também não toquei no assunto. Até que em Agosto a bomba cai. «Jogador português tem de estar 16 meses na tropa», dizia um jornal. «Gil y Gil enganado pelos portugueses», dizia outro. Enfim, era o tema do dia. Tive de confessar a Gil que ou regressava a Portugal ou era refractário. Devo a Mário Soares a resolução do problema, ao ter-me tornado no primeiro atleta português com o estatuto de alta competição de elite. A tropa ficou assim adiada por oito anos. No livro relato a conversa que mantive com ele ao telefone.Mas a historia não acaba aqui.Longe disso. No estatuto de alta competição havia uma cláusula que determinava o fim do prazo de adiamento caso regressasse a Portugal. Ora eu fui contratado pelo Benfica em 1993. E, claro, a polícia bateu à porta a lembrar que tinha de me apresentar em Castelo Branco dentro de seis meses. No livro conto a novela inteira, uma novela que me perseguiu durante anos e que chegou a Berlusconi.No livro é muito agressivo com Sousa Cintra.E tenho razões. Antes de assinar pelo Benfica tinha chegado a acordo com o Sporting, então presidido por Sousa Cintra, a quem falei no meu problema da tropa. Mas ele disse para eu estar tranquilo porque conhecia muitos militares do Sporting e resolvia o assunto. Ficámos de nos encontrar no aeroporto na minha visita seguinte. Até hoje não apareceu nem deu justificação. Mais, sei que foi ele quem alertou os militares para a minha situação só para me tramar. Em contrapartida, Jorge de Brito foi das pessoas mais sérias que encontrei no futebol. No Benfica apanhei o pior balneário da minha carreira. Tinha vários grupos. O mais forte era «A Turma», o grupo dos portugueses. Não foi fácil para mim, não fui bem recebido mas acabei por aprender algumas coisas - eu que pensava conhecer todas as manhas do balneário. Um dia, o Iuran ensinou-me como escapar de um treino depois de uma directa mas essa fica só para quem ler o livro. Mas na Luz vivi também bons momentos, a final da Taça de Portugal contra o Boavista - marquei dois golos, fiz uma assistência e sofri uma grande penalidade. Momentos insólitos - por causa de mim caiu o Conselho de Administração da RTP e saí de Portugal para o Marselha mais valioso do que tinha chegado.Diz no seu livro: «Sou o único jogador do mundo que disse não ao Real Madrid»...E é verdade. A minha paixão pelo Atlético falou mais alto e hoje faria o mesmo.Mas ajudou a levar Figo para o clube.Foi em 2000, estamos a falar da maior transferência até essa altura e a única até hoje paga em cash. Setenta milhões de euros, cash. A transferência foi um milagre. Resumindo: apresentam-me Florentino Pérez, dizem-me que quer ser presidente do Real Madrid e quer como trunfo eleitoral Luís Figo. E dizem-me: «És a chave de todo este processo.» Nessa altura pensei que era brincadeira ou estava tudo louco. Eu, símbolo do Atlético de Madrid, metido naquele filme? Figo no Real? Derrotar Sainz, acabado de sagrar-se campeão europeu? Mas aconteceu e foi uma história de loucos. Convenci José Veiga, ele chegou a acordo com o Florentino Pérez. Com o Veiga convenci o Figo e escreveu-se o contrato com uma cláusula de indemnização para o Real Madrid de trinta milhões de euros caso o Figo renunciasse. Com esse contrato na mão, Pérez dá uma conferência de Imprensa a anunciar o Figo. Acabado o Europeu, o Figo foi para o Algarve e aí começaram os problemas, as pressões, as ameaças e, a certa altura, o Figo sente-se encurralado e afirma a um jornal que nunca vestiria a camisola do Real. O Florentino ganha, mas o Figo, na altura na Sardenha, mantém que não vai para o Real, e junta às ameaças o medo de enfrentar aquele balneário.O problema é que havia a cláusula dos trinta milhões. Fui com o Veiga para a Sardenha e ele já chorava a pensar no que tinha de pagar ao Real. Consegui marcar uma reunião em Lisboa com Figo e Florentino Pérez. Eu já estava acordado há trinta horas, tinha tomado mais de cem cafés e fumado cinco maços de tabaco. Trazemos o Figo para Lisboa. A reunião começou à uma da manhã. Às seis da manhã estava tudo igual. A certa altura, o Florentino pergunta ao Figo o que é que ele quer para ser jogador do Real. E o Figo só diz isto: «O Sá Pinto.» Todos ficaram espantados: o Sá Pinto??? Quando o presidente do Real pergunta quem é essa pessoa, um dos presentes diz que é um ciclista. Eu percebi o Figo. E explico no livro porquê. Porque isto é só metade de uma história que me define porque mostra o meu lado mais astuto. Não vou ao ponto de subscrever quem diz que o Florentino me deve a presidência mas, modéstia à parte, tive um papel importante.Diz que Dani é o actor secundário do livro.E é. Eu levei o Dani para o Atlético de Madrid mas antes obriguei-o a dizer que ele sabia que eu era o único maluco que ainda apostava nele. E também o obriguei a dizer que, defraudada essa confiança, me autorizava a dar-lhe um tiro no joelho. E como defraudou puxei mesmo da pistola. Foi uma das histórias do meu tempo de director desportivo do Atlético. Foram várias. Há aquela em que querendo despachar um jogador para o Vitória de Guimarães, o convenci de que aquela cidade era a Veneza portuguesa.Dedica um capítulo a Saltillo e à selecção. Tudo teria sido diferente se tivesse jogado com a geração de ouro?Tive algum azar. Há um vazio onde estou eu e o Rui Barros. Depois de Saltillo estive dois anos sem jogar por solidariedade com os outros jogadores e a geração de ouro aparece quando eu tinha 26/27 anos e já depois de uma lesão grave. Em Saltillo vi apenas um dado positivo - a união dos jogadores. Até lá, os jogadores do FC Porto e do Benfica na selecção não se falavam, nas refeições ficavam o mais longe possível uns dos outros e no autocarro também. Saltillo uniu os jogadores e dois anos depois, quando regressei à selecção, o ambiente continuava muito bom. A partir de Saltillo a separação deixou de fazer sentido. No resto, foi uma desgraça. Da parte de todos. Dos dirigentes, que nem apareciam, e da nossa parte, que andávamos de festa privada em festa privada, em casas da alta sociedade local, subornando os guardas do hotel para nos deixarem passar. E enquanto andávamos nesta vida, Silva Resende, presidente da Federação, estava longe, na Cidade do México, e não resolvia o nosso problema dos prémios.Momentos de uma carreira3 de Setembro de 1983 - com 17 anos torna-se o jogador português mais jovem de sempre a vestir a camisola da selecção nacional.27 de Maio de 1987 - vence a Taça dos Campeões Europeus (actual Champions League) pelo FC Porto.27 de Junho de 1992 - vence a Copa del Rey pelo Atlético de Madrid (contra o Real Madrid) e torna-se no primeiro português a receber o troféu das mãos do rei Juan Carlos de Espanha.Junho de 1995 - pela primeira vez, um jogador português assina pelo AC Milan.Junho de 1996 - torna-se o primeiro português a actuar na Premier League, em Inglaterra.Dezembro de 1996 - anuncia o fim da carreira.19 Janeiro de 1997 - recebe do Atlético de Madrid a insígnia de ouro e brilhantes, distinção máxima que um futebolista pode receber de um clube espanhol.29 de Julho de 1997 - oficializa o regresso ao futebol no Atlético de Madrid.Abril de 1998 - torna-se o primeiro futebolista nascido em Portugal a jogar no Japão.6 de Novembro de 2000 - primeiro dia como director desportivo do Atlético de Madrid. Títulos e prémios2 Ligas portuguesas.2 Supertaças de Portugal.2 Taças do Rei (Espanha).1 Liga italiana.1 Taça dos Campeões Europeus (actual Champions League).Foi considerado o melhor jogador da Liga portuguesa em 1985/86 e 1986/87.Bola de prata da FIFA em 1987.Melhor jogador estrangeiro da Liga espanhola em 1991/92.El PortuguésO livro Paulo Futre, El Portugués vai ser lançado a 17 de Maio em Lisboa, e uma semana depois, a 24 de Maio, no Porto, em local e hora ainda a designar. Hoje e amanhã, entre as 16 e as 19 horas, Paulo Futre vai estar na Feira do Livro de Lisboa, na Praça LeYa, para uma sessão de autógrafos. O livro, escrito por Luís Aguilar, revela os escândalos, as polémicas e os grandes momentos da vida e da carreira do jogador.

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