«A Fly é uma mosca que pode voar para o infinito!»

Aos 14 anos <strong>Fortunato Frederico</strong> varria o chão de uma fábrica de calçado e sonhava ter a sua. Aos 69 é o dono da oitava marca de sapatos mais vendida no mundo: a Fly London, com sede em Guimarães. Eis a vida extraordinária de um empresário português.
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Com que idade teve os seus primeiros sapatos?

Quando fui para a escola já fui calçado.

Eram sapatos seus, emprestados ou herdados?

Nesse tempo usava-se o tipo de soleta, uma tamanca! Uma coisa de pau que tinha uma tira de couro. Ainda me lembro de ouvir de manhã o barulho nas ruas, quando as pessoas iam trabalhar, tec, tec, tec. Eu tive as minhas. Fui criado por uma freirinha, que foi a minha segunda mãe. E ela tratava bem de mim!

Conte lá essa história da freirinha...

A minha mãe tinha três filhos, eu era o terceiro. Ela ficou viúva, era quase invisual, criada de servir, e portanto não nos podia aguentar aos três. As minhas irmãs conheceram o meu pai, eu não. Morreu quando eu tinha 15 dias de vida. E a minha mãe entregou-me numa creche em São Francisco. Uma freirinha de lá gostou e tomou conta de mim, passou a ser a minha segunda mãe.

Foi criado sempre por ela?

Até aos 14 anos, até sair do seminário, vivi sempre com ela, embora visitasse a minha mãe todas as semanas. Ela não tinha outro protegido e era só mimo, não me faltava nada!

E quando é que entrou para o seminário?

Com dez anos, depois de fazer a quarta classe.

Que memórias tem desse tempo?

Tempos bons. Primeiro estive no Colégio dos Órfãos de São Caetano, em Braga. Quando fiz a quarta classe fui para o seminário. Lembro-me das brincadeiras em que os mais velhos protegiam os mais novos e quando se encontrava alguém que era da terra havia uma espécie de solidariedade regional. Fui educado por uns padres da Ordem S. Francisco de Sales, espanhóis, cuja formação passava por muito desporto, para despertar o espírito ganhador. De corridas de sacos a jogos de futebol, havia sempre a preocupação de incutir uma mentalidade vencedora.

Já nessa altura queria ganhar sempre?

Sempre, gostava sempre de ser primeiro. Ganhava muita coisa, sacos, maratona, pingue-pongue!

Futebol não?

Futebol não muito, era mais hóquei em campo e mais tarde passou para hóquei em patins.

E histórias do seminário...

Oh, tantas... Por exemplo, fumar. Fizemos cigarros com as barbas do milho, mas fui apanhado por um padre, meti o cigarro no bolso e aquilo começou a fumegar. O padre apercebeu-se, não disse nada e ficou à espera que começasse a gemer com a queimadura até finalmente exclamar: Então «a fumar, meu malandro!» Ainda hoje é vivo esse padre! [risos]

Alguma vez pensou ser padre?

Não. Por obrigação podia ter sido, repare que naquele tempo a gente não tinha opções. Mas aos 14 anos começa-se a despertar para a vida e...

As moças?

Exactamente. Acabei por ser analisado e disseram «este gajo não serve para padre, é melhor pô-lo fora antes que ele faça alguma asneira». Fui chamado depois ao reitor, que me disse: «Não tens vocação para isto.»

Ficou triste?

Não, triste não fiquei. Mas gostava de ter sido missionário, naquele tempo via muitas coisas dos missionários em África. Mas o meu espírito liberal não deixava que me pusessem freios, vida de clausura, prisão.

Além do espírito competitivo, o que mais ganhou no seminário?

A solidariedade. A ordem franciscana tinha muito o culto da solidariedade, que me ficou para a vida. Os mais fortes, os mais capazes, têm de proteger os menos favorecidos, os mais indefesos. Esse espírito de defesa dos mais desfavorecidos, dos mais desvalidos, marcou-me, e hoje procuro segui-lo: fui protegido quando era um desprotegido do mundo e acho que tenho a obrigação de retribuir...

Já li que gosta de ler, de filosofia. Outra herança do seminário?

Sim, lia muito naquela idade. Mais literatura estrangeira do que portuguesa, livros da clandestinidade, de um outro mundo em que nós não vivíamos. A minha curiosidade era conhecer o que se passava do lado de lá. De cá eu conhecia o dia-a-dia, a realidade. Lia escritores russos, a Mãe, de Máximo Gorki, Crime e Castigo [Fiódor Dostoiévski].

E música?

Gregoriana. Ainda hoje gosto muito. E também fui cantor. Fazia parte do coro do seminário, a gente comia um bocadinho de bacalhau salgado para afinar a voz...

Então não era um golinho de aguardente ou de bagaço?

Não, não! Era um bocadinho de bacalhau salgado uma hora antes de cantar, para afinar a voz.

Quando saiu do seminário porque não continuou os estudos?

Só fiz o quarto ano, depois voltei para Guimarães. A freirinha entretanto morreu e eu vim para casa da minha mãe e tive de ir trabalhar para o Campeão Português [fábrica de calçado]. Teria 14 ou 15 anos.

Como é que vai parar a uma fábrica de calçado? Era a tradição?

Não. Queria trabalhar, não tinha emprego e ouvi dizer que o Campeão Português ia mudar de sítio e que estava a meter gente. E fui lá pedir trabalho.

Começou muito novo numa fábrica, mas isso era normal à época. Recentemente houve várias polémicas de miúdos que continuavam a trabalhar nas fábricas de calçado e que cosiam sapatos em casa para a Zara. Ainda há miúdos nas fábricas ou a trabalhar em casa?

Isso acabou há meia dúzia de anos. Mas hoje... ainda há funcionários que me pedem para os miúdos, com 16 anos, virem para cá um mês, nas férias, para ganhar algum e para trabalhar. E nós temos todo o gosto. Se se usar trabalho infantil para explorar, para ganhar dinheiro, é uma coisa. Se se empregarem pessoas com 14, 15 anos, para que tenham uma ocupação nos tempos livres, quando os pais não os podem acompanhar, acho que é de uma utilidade incrível. Um jovem dessa idade, quando não tem para onde ir, fica à mercê da rua. É muito mais grave a sociedade não lhe dar a oportunidade de ele ir nas férias para uma fábrica. Logicamente que o trabalho infantil é uma coisa condenável, mas numa aldeia em que uma família com seis, sete filhos, sem televisão, se à noite estiverem todos à volta da lareira a fazer um trabalho útil para a sociedade, não é crime nenhum. Não é politicamente correcto dizer isto, mas digo-o com frontalidade.

Começou logo a fazer sapatos?

Não, só depois de três anos. Numa máquina de fechar calcanheiras. O sapato é montado à frente, é montado dos lados e depois é fechada a calcanheira.

E foi aí que começou a gostar desta indústria do calçado?

Quando a gente não tem namorada e arranja uma começa a gostar dela ou não. Eu não tinha trabalho, passei a trabalhar e passei a gostar daquilo que fazia! Mas só depois da vida militar...

Foi para Angola, certo?

Exactamente. Em 1967. Pelotão 1903, companhia 444. E enquanto estava em Angola comecei a questionar-me, «o que é que vou fazer da minha vida?». Como o calçado era aquilo em que sabia trabalhar decidi que seria esse o meu futuro.

Que memórias tem da guerra?

Boas, de camaradagem. Uma vida sem compromissos (só casei um ano e meio depois de voltar), em que era preciso viver o dia-a-dia, gozá-lo, porque no dia seguinte podíamos não estar vivos. Com sacrifícios, porque era preciso fazer campanhas de mato, oito, dez dias sem condições. Mas quando regressávamos ao quartel era uma festa, estávamos vivos. Íamos beber umas cervejas, uns jogavam, outros discutiam. Eu era do grupo que discutia muito, os outros eram do que jogava muito.

O que é que discutia? A guerra?

Sim, a necessidade da guerra e se não haveria outro caminho...

Era contra a guerra?

Fui sempre.

Nunca pensou sair do país, fugir ao serviço militar?

Não, acho que seria um gesto de cobardia deixar os outros. Pelo contrário, era contra os que fugiam.

Perdeu amigos na guerra?

Felizmente, não.

E ainda se juntam?

Todos os anos fazemos uma confraternização. Desde 1975. E poucos falham ainda, Graças a Deus.

Estava a contar que foi no tempo livre, em que discutia tudo em África, em Angola, que se lembrou de que este era o seu futuro. Pôs mãos à obra mal voltou?

Não, tive um período de nojo. Fiquei conhecido em Angola por dizer que, como estávamos num mundo bom e bonito, o papel higiénico devia ser cor-de-rosa. Era o homem que queria que a tropa tivesse papel higiénico cor-de-rosa. Era assim que pensava, tudo muito humanista. Quando voltei, voltei ao Campeão Português. Estive lá um ano. Entretanto dá-se o 25 de Abril e eu fiquei desempregado.

Porquê?

Era um humanista, achava que o mundo devia ser diferente. As pessoas achavam que não, que isto tinha de andar mais devagar. Fiquei desempregado e tive de começar tudo de novo, tornei-me novamente mecânico, andei a fazer reparações de máquinas nas fábricas de calçado. Depois apareceram dois jovens que trabalhavam com o pai mas queriam ter a fábrica deles e convidaram-me para ser sócio.

E onde é que foi arranjar o dinheiro? Pediu emprestado?

Tinha algum, sou um homem de economias. Já tinha o meu projecto em mente e tinha algum de lado. Entrei com a minha parte e fizemos uma sociedade a três.

Quanto é que pôs nessa altura? Quantos contos?

Não sei se foram mil ou 1750 contos. Foi a minha primeira fábrica. Estive lá sete anos e só então saí para realizar o meu projecto, que era diferente do deles. Eles estavam mais vocacionados para as grandes produções, para os grandes clientes. Eu queria uma marca própria. Houve alguns atritos porque quando se desfaz uma sociedade é como quando se desfaz um casamento, mas hoje somos amigos e convivemos muito. Convidei o Amílcar, que já trabalhava comigo desde os 15 anos, e um economista e disse-lhes: «Ficais com dez por cento cada um e vamos fazer uma fábrica com uma marca. Mas ides trabalhar muito e não será fácil, não penseis que vamos ficar todos ricos.» E começou a Kyaia.

Kyaia por causa da zona onde esteve em Angola.

Gostei tanto de lá estar que quis prestar essa homenagem a Kyaia.

E avançou logo com a marca própria?

Fizemos isto em 1984, e só em 1991/92 é que começámos a avançar com a criação da marca. Depois de vermos como é que o mercado funcionava. Começámos com 150 mil contos no primeiro ano. E fomos sempre crescendo. Hoje o grupo factura 55 milhões de euros.

E quantos empregados já tem agora?

De vinte passámos para cerca de seiscentos, mais ou menos.

E andava de feira em feira?

Antes de ter a fábrica, como fui mecânico e vendedor de máquinas de calçado, conheci várias feiras. Paris e Dusseldorf eram as mais importantes. Mas foi uma das minhas ideias, conhecer como era o mercado.

Faz gala de não falar inglês. Não fala mesmo?

Digo yes, i love you, my darling... [risos]

E como é que comunica nesses mercados?

Nos primeiros tempos não tinha problemas em falar setenta por cento gestual e trinta por cento de misturas. Hoje já tenho...

Nunca pensou aprender?

Não, porque não me interessava. Na indústria, no comércio, surgem sempre problemas. E se falamos inglês temos de enfrentar esses problemas, nem temos tempo para nos prepararmos. Decidi não saber muito para serem outros a levar com os problemas e só mos trazerem depois para encontrarmos a decisão. Foi de propósito! Sabia como é que as coisas funcionavam e pensei: «Se falas inglês és o primeiro a levar com um balde nas trombas. Se não falas inglês, os outros tomam conhecimento do problema e depois tu tens tempo para pensar.» Foi uma estratégia delineada!

E fala alguma outra língua, francês, espanhol?

Francês falo melhor porque aprendi no seminário, tenho alguma facilidade. Espanhol é fácil.

Quando viaja em trabalho vai sempre acompanhado por causa da língua?

Não. Viajo sozinho, não tenho problema nenhum. Se não entendo, esperam que eu entenda ou que alguém me explique.

O facto de não saber falar inglês já o levou a cometer muitas gaffes, muitas asneiras?

Sim, mas acho que isso tem até alguma graça. Alegra algumas discussões. Uma vez estávamos a visitar uma fábrica, salvo erro na Índia, apareceu o filho do patrão que andava a estudar. Eu queria perguntar se ele gostava dos sapatos e dizia «I like the shoes, I like the shoes!», ele olhava para mim, para as pessoas, que eram muitas, e eu a teimar no «I like the shoes». «E o que é que eu tenho que ver com isso de tu gostares de sapatos?», devia ele pensar. Depois é que avisaram, «pergunte you». Ele então entendeu. [risos]

Quando fundou a fábrica e começou a ganhar algum dinheiro, nunca se deslumbrou? Aqui no vale do Ave havia a moda de comprar Ferrari, Lamborghini...

O meu projecto nunca foi ter carros, foi ter uma fábrica, ter pessoal, lidar com gente. O resto não conta muito para mim.

Então qual foi o seu primeiro carro, que idade tinha?

Um Fiat 127 que me foi oferecido pela empresa para a qual eu vendia máquinas, como prémio das vendas que fiz ao fim de um ano de trabalho. Foi o primeiro carro que tive. Em 1971/72, quando vim do Ultramar.

E quando é que comprou o seu primeiro carro?

Quando fiz a primeira sociedade. Era um Fiat 2002 em segunda mão.

E agora, que carro é que tem? É daqueles que não troca de carro, como Belmiro de Azevedo, senão ao fim de dez anos?

Um Mercedes. Em primeira mão. [risos]. Tem três anos, penso eu. Eu mudo de carro quando eles acabam o leasing. Como faço muitos quilómetros, tenho de ter um carro seguro.

A FÁBRICA

A sua organização é militar?

Tenho muito apreço pela organização militar da vida. Fui sargento. Foi uma asneira muito grande terem acabado com o serviço militar obrigatório.

Porquê?

Hoje um aluno sai da universidade, sai da escola, e a única coisa que traz na cabeça é a queima das fitas, os trajes... Não traz noção nenhuma do que é uma organização social de hierarquias, de trabalho, de horários, de se pôr a pé a tempo e horas, de se deitar a tempo e horas para no outro dia estar capaz. O serviço militar incute esse espírito. Podem deitar-se às oito da manhã, mas quando se vão deitar sabem que depois têm de estar na parada acordados senão levam uma chapada. Hoje os estudantes entram às oito, mas se for preciso vão para a cama a essa hora e nem vão à escola. O serviço militar deveria ter sido substituído por um serviço cívico, uma espécie de interregno entre a escola e a vida civil. Mas o que criaram foi as Oportunidades, aquele programa... e ninguém aprende nada. A gente perde um tempo infinito...

Quanto tempo é que demora, mais ou menos, a formação de um empregado?

Ao fim de dois anos um empregado começa a saber fazer algum serviço. Se não for malandro ou desleixado, se for interessado... Na nossa empresa, não exagero se lhe disser que 85 a noventa por cento dos lugares de chefia são ocupados por gente que veio para aqui com 16, 17 anos.

Conhece os empregados todos? Os mais de seiscentos...

A maioria conheço. Não falo com eles todos os dias, mas gosto de passar por eles e poder dizer «estás bom, ó Zé?» Sei se casaram, se tiveram filhos... faz parte do ambiente cultural da empresa. E há filhos que já cá trabalham.

Além de Paredes de Coura, também fez uma fábrica no Paquistão. Porquê tão longe?

A indústria portuguesa do calçado foi sempre uma indústria desprotegida: antes do 25 de Abril eram os bancos, com o crédito que davam às indústrias, que as iam mantendo. Depois do 25 de Abril foram os curtidores, gente rica, que controlavam os sapateiros, davam-lhe crédito e forneciam-lhes as peles conforme as suas conveniências. Só bem depois é que os industriais de calçado conseguiram libertar-se, começaram a ir ao mercado, directamente dos fornecedores! No têxtil, que já criara algumas fortunas, havia acesso ao poder e podiam crescer; a indústria do calçado, sendo mais marginal e mais pobre, não. Havia só o Campeão Português, de um homem visionário... e também não falava inglês! [risos]

Insisto. Vejo que no escritório tem imensas fotos do Paquistão, porque é que foi lá para aquele fim do mundo, como se costuma dizer?

Íamos começar a nossa actividade industrial, tínhamos fechado o negócio com uma fábrica de curtumes para nos fornecer as peles para essa primeira encomenda, eram sessenta, setenta mil pares, muita pele. Demos a encomenda com tempo, três meses. Oito dias antes de precisarmos das peles veio cá o representante da fábrica dizer que não nos podia fornecer nem na qualidade que tínhamos comprado, nem por aquele preço. Era normal perante os industriais de calçado, à última hora...

Aumentavam o preço?

Aumentavam o preço, havia sempre qualquer coisa! Fiquei desesperado porque íamos ter graves prejuízos. Tive de me meter num avião e ir a uma feira de couro em Paris. Por mero acaso caí no pavilhão dos paquistaneses. Tinham exactamente a pele que ia gastar, na mesma cor, tudo direitinho. Fui falar com o homem, não falava inglês, perguntei-lhe o preço e qual foi o meu espanto por ser cinquenta por cento menos do que aqui em Portugal. Quase desmaiava, mas não quis demonstrar. As peles do Paquistão são das melhores que há para fazer botas e sapatos de senhora. E eu ali um bocado atrapalhado, não sabia como é que me havia de entender com o homem, também não queria perder o negócio... Olhei para um corredor e passou um português que eu conhecia. Ele veio, traduziu, só dizia: «Isto é realmente um negócio da China»... Eu para o paquistanês: «Preciso de tantos pés.» E ele: «Há carta de crédito?» Ora a nossa empresa tinha para aí um mês, mês e meio, tinha lá carta de crédito. Expliquei a coisa, propus algo como as tranches da troika, ele dava-me a primeira tranche, eu pagava, e depois dava-me tempo para saber como conseguir a carta de crédito. O homem deve ter gostado de mim e mandou. Já morreu, coitado. Chegámos a desenvolver uma amizade muito grande e muito forte, ao ponto de eu lá ir várias vezes com a minha família e ele vir cá.

E ainda tem lá negócios agora?

Não. As peles encareceram muito, o mercado das peles é assim. Mas temos relações de amizade ainda.

Onde é que compra agora as peles?

Em Portugal é sempre o residual. Oitenta, noventa por cento são compradas fora. São da Europa e algumas da América. Acima de tudo, do Leste.

A FLY

Há pouco estava a contar que o seu sonho de ter uma marca própria foi crescendo. Foi assim que chegou à Fly London, que é hoje a sua grande referência?

Foi na feira de Dusseldorf. Bem... como é que a gente casa com uma mulher? Encontra-a em qualquer lado, até que pensa «é esta que me interessa». Depois até pode dar uma barraca do caraças, mas é assim! [risos] É essa a nossa história. Andávamos a mastigar essa ideia de uma marca, já tínhamos feito algumas tentativas de mudar o lettering da Kyaia, mas nunca resultava. Estas coisas não têm explicação, nem científica, nem matemática. Há algo emocional... Não escolhemos uma mulher porque é muito alta ou muito baixa, é um olhar que se troca, outra coisa qualquer. Nessa feira de Dusseldorf uma pessoa contou-nos que uns gajos de um stand que estava ali a meia dúzia de metros não ia abrir porque eles se tinham zangado, tinham ido de carro de Inglaterra e chatearam-se no caminho.

E?

No mundo dos negócios é assim: vemos uma coisa e ou se perde oportunidade, ou não se perde. Chegámos lá e vimos Fly, aquela marca estranha da mosca estilizada, e foi logo. «Eh pá!, fogo, a gente anda a sonhar com isto mas nunca encontrou, é isto que nos interessa!». Tomámos a decisão naquele momento. «Acabou, não se gasta mais dinheiro a fazer desenhos, quem são os donos?» Fomos ter com um e dissemos: «Nós sabemos que isto é um projecto que já não vai para a frente, quer vender?» E o gajo, como era o capitalista, quis foi receber o dinheiro que tinha gasto.

Quanto é que custou?

Já não sei, foi das coisas que nunca mais me preocuparam. Mas era um dinheirito, que a gente nem tinha na ocasião.

Quem conhece os sapatos Fly, o estilo, o design, não vê nem a marca como portuguesa, nem a si como dono. Como é que gostou de algo tão diferente?

A marca era um projecto, era um bebé, e quando um bebé nasce não se sabe se ele vai ser padre, se vai ser ditador. A gente precisava de um bebé e sabíamos que tratamento lhe dar... e o bebé agradou-nos à primeira vista! Era bonito, tinha aquela imagem...

O símbolo da mosca?

Sim. Sou muito conservador nos hábitos, mas no espírito sou muito liberal e achei que aquilo... Repare no símbolo da Kyaia, quando o fiz também tinha pouco dinheiro e tive de me servir de um amigo que desenhava umas coisas. Pedi-lhe para fazer qualquer coisa que rompesse. Veja [mostra a marca num quadro da parede do escritório, cheio de fotos antigas], aquele círculo preto é o mundo, que era negro naquele tempo, e o K rasga e vai por aí fora, para uma coisa mais clarinha e bonita. É toda uma simbologia: «A gente vive aqui num mundo fechado, Portugal é um mundo fechado, eu quero rasgar esta porcaria!» A Fly tem também essa lógica, é uma mosca que pode voar para o infinito!

Sim, é o lema «Don"t walk, Fly».

Exactamente! Foi esse espírito. O Kyaia não era tratável em termos comerciais, mas o Fly já é. É um raciocínio muito simples, não tem grandes estudos de marketing, tem um instinto, é o meu instinto da conservação, algo da natureza humana, que me apontou que aquilo era realmente um projecto em que devia e podia arriscar.

Quem é que começou a desenhar os sapatos tão inovadores, tão fora do vulgar?

O primeiro passo foi comprar ao capitalista o projecto. O segundo foi ir ter com o técnico que ele tinha e perguntar se queria trabalhar connosco. Era um técnico inglês. Nós já vendíamos sapatos para Inglaterra, mas sem marca, os sapatos saíam daqui a 10, 15 libras e depois a gente ia vê-los nas lojas a 60 e a 65 libras. Fazíamos sapatos avançados para a época. A Kyaia deve ter sido a primeira fábrica no país a fazer sapatos vermelhos, amarelos, azuis, cor-de-rosa, nas cores mais espectaculares que havia para a época e com um espírito libertário que cá não havia, nem ninguém queria. Eram para os alemães, para os franceses...

A marca Fly aproveitou a experiência?

O nosso espírito rapidamente se adaptou à lógica do designer. Já tínhamos uma escola, uma filosofia de colecção. Não foi preciso pegar na fábrica e virá-la do avesso. Sabíamos que objectivo queríamos atingir, só não sabíamos o caminho. Ele foi o indivíduo que o indicou.

Quanto tempo é que ele esteve convosco?

Seis ou sete anos. Tinha um contrato. No momento em que o infringiu, acabámos. A regra era trabalhar em exclusivo para nós. Mas como sempre, em Portugal, começou a ser tentado pela serpente do paraíso. Ganhava muito dinheiro, mas a natureza humana é assim, achava que ainda podia ganhar mais e quando lhe apareceu a serpente não resistiu. Nós soubemos e acabou.

Contrataram alguém para o lugar?

Já tínhamos uma ou duas pessoas a trabalhar em paralelo com ele. Ele não aceitava muito bem essas regras e penso que pensou «esta gente está dependente de mim, portanto vou fazer o que me apetece». Mas comigo ninguém pode dizer isso.

Mostram-lhes os desenhos dos sapatos antes de avançar? Quem é que aprova?

As pessoas vêm e expõem as suas ideias... os desenhos, o produto. E depois tomamos a decisão de avançar ou não. Hoje quem trata disso é o Amílcar, que é o homem que foi especializado nessa área. Quando o convidei para sócio foi para ser comercial e para aprender. Até inglês aprendeu, a trabalhar, não na escola. Ele é que foi acompanhando todo este processo e hoje é o responsável: as pessoas apresentam-lhe os projectos, ele coordena, faz estudos sobre as tendências. Enquanto uma colecção de um estilista como um Miguel Vieira é baseada no poder criativo, nós baseamos a nossa numa história. É como Portugal, tem oitocentos anos de história. A Fly London tem 15 ou 16. O seu crescimento é sustentado não por inspirações, por flashes, mas pelo historial que vai criando. Os principais responsáveis da criação da Fly não são os estilistas, é o consumidor. Alicerça-se tudo nos dados dos últimos seis, sete anos. Penso que o fracasso do nosso país hoje é exactamente porque os políticos nunca olham para o passado, olham sempre para o futuro e fazem-nos afundar. A lógica deles é mudar, em vez de ver o passado como sustento do futuro.

O nome em inglês, Fly London, ajudou? Durante algum tempo sei que nem dizia que era portuguesa...

A marca apareceu no mercado e o cliente não questionava se era português ou americano. As pessoas gostavam, sabiam quanto tinham de pagar, não nos pediam explicações. Quando agrada as pessoas compram e não questionam se é do Manuel, se é do Joaquim.

Neste momento tem 1500 lojas no mundo...

Clientes, clientes! 1500 clientes em 55 países no mundo.

Já foi visitar todos esses países?

Todos não, não fui ainda ao Canadá, não fui ainda àquelas ilhas... à Austrália. Mas está no meu programa ir, é o que quero levar.

E lojas Fly London?

As lojas são nossas. Uma em Lisboa, outra no Porto, na Dinamarca, em Londres, em Berlim. Não faz parte, para já, do nosso projecto, ter uma rede de lojas próprias, como a Camper. Ainda é cedo. É preciso muito dinheiro, não queremos recorrer a empréstimos para fazer esse crescimento, não queremos ficar na situação em que o país está hoje por causa de empréstimos. A nossa filosofia é ir montando uma loja onde o mercado cresce e temos já força. E é para servir de amostra, porque as lojas têm sapatos de criança, de senhora, têm óculos, têm roupa, mostram ao mercado o que é a Fly London.

Não tem empréstimos?

Dos difíceis, graças a Deus, não. Temos, claro, para gerir a empresa, mas não para crescimento. Esse é feito com recursos próprios.

Os bancos a si nunca lhe fecharam as portas?

Nunca me fecharam as portas e nunca me pediram avales pessoais Os bancos ainda confiam em nós. Pelo menos durmo descansado.

A CRISE

Vamos falar agora mais do negócio. Este ano vai mesmo distribuir lucros pelos trabalhadores? Com esta crise?

Estamos a pensar, no fim do ano, não fugir à tradição. É um bónus pelo sacrifício.

E essa tradição vale quanto a cada trabalhador?

Àqueles que nunca faltaram, será um mês. Depois, esse mês é afectado pelos dias de ausência, quanto menos trabalho tiveram na empresa, menos recebem.

Paga, em média, o salário mínimo, ou um bocadinho mais?

O salário mínimo sempre com um pequeno acréscimo. Mas não é muito, porque também não podemos...

E os trabalhadores qualificados, os quadros?

Os quadros ganham dentro daquilo que o mercado manda. Noventa por cento dos quadros desta empresa foram formados cá. Para os fixar, ganham sempre um bocadinho acima da média.

O negócio este ano está muito afectado pela crise?

No mercado interno, que não é Fly, é Foreva, o mês de Outubro foi um mês de tragédia, estávamos completamente assustados... Antes das primeiras chuvas, íamos com 65% a menos. Vieram as chuvas, baixou para quarenta por cento. Mas já não tivemos tempo de recuperar... Acabar o ano, na Foreva, com dez, doze por cento a menos não nos assusta porque já tínhamos projectado esse cenário com aperto em alguns sectores.

Despedimentos não?

Não, será a última coisa a fazer nesta fábrica. Se tiver de pedir ao pessoal para trabalhar mais uma hora, hora e meia, para não baixar salários e não despedir ninguém, farei isso com toda a lisura. Mas penso que, a curto prazo, não será necessário.

E as encomendas do estrangeiro, as da Fly, têm-se ressentido?

Isto é como o míldio, aquela doença que aparece na vinha, uma mancha aqui e de repente... espalha-se. Apareceu em Portugal e onde já vai... Vínhamos com um crescimento na Fly de cerca de vinte por cento até Junho, Julho, e notámos que em Setembro as coisas baixaram. Se esta tendência continuar até ao fim do ano, teremos apenas oito por cento de crescimento. Na Foreva a coisa está pior e há algumas perspectivas de pisarmos o risco vermelho. Mas defendo que não se deve baixar salários, deve-se pedir às pessoas para trabalhar mais. Se todas as pessoas trabalharem mais tempo, os tribunais vão pôr os processos em dia, as finanças vão pôr as cobranças em dia, vai-se produzir mais e as empresas podem fornecer os serviços mais baratos. Isso vai criar uma dinâmica de crescimento e de criação de emprego. Se for o contrário, «cortar, cortar», criará recessão, desemprego...

E então esta meia hora a mais, que o governo agora decidiu, é uma decisão boa?

É meia decisão. Acho que o governo devia ter optado por falar com os sindicatos, não se pode decidir por decreto. E dizer: «Meus amigos, ou é abaixamento de salários ou despedimento. O que é que vocês acham que é mais racional, é pedir que durante um período de dois, três anos, as pessoas trabalhem mais e depois ver que riqueza é que isso criou e como é que ela pode ser distribuída, ou despedir?» Penso que não há sindicato que dissesse: «Queremos é o pessoal todo na rua, queremos é tudo despedido!» Tenho a certeza que se dissesse aos meus trabalhadores eles preferiam trabalhar mais horas! No passado trabalhava-se 48 horas e ninguém morria nem emagrecia por causa disso! A minha mãe ficou viúva. Mas para não faltar nada aos filhos, levantava-se duas horas mais cedo e ia a duas missas, a das seis e a das sete, onde cada um ganhava um pão de centeio. Se até a minha mãe percebeu isso, que às vezes é preciso trabalhar mais duas horas para ter as coisas, então agora não percebem?

Acha que em Portugal se produz pouco?

Não! Em Portugal não se produz pouco, em Portugal incorpora-se pouco valor acrescentado naquilo que fazemos. Esse é o nosso grande drama. A indústria do calçado é uma indústria competitiva, mas ainda precisa de meia dúzia de anos para podermos dar valor e vender sapatos ao preço dos italianos. Aí seremos os melhores. Se houver uma política correcta, uma visão correcta dos industriais, dos trabalhadores, dos sindicatos, dentro de meia dúzia de anos podemos vender os sapatos tão caros como os italianos.

O seu lema é «não preciso que me ajudem, mas não me atrapalhem». Certo?

Sim. Farto-me de o dizer. Ora, hoje, não é assim. Estamos a discutir a meia hora, eu fui sempre apologista de mais uma hora, no mínimo, e defendo-o há muito tempo, há mais de um ano que o ando a dizer. Meia hora dá-nos seis por cento de competitividade. O que nós precisávamos era de aumentar o salário mínimo, aumentar as pensões mais baixas. Se as empresas ganhassem, em vez de seis por cento, 12 por cento de competitividade com mais uma hora de trabalho por dia, podiam pegar em metade para subir o salário mínimo e as pensões mais baixas. Essa gente não vai para o estrangeiro gozar férias, vão gastar na mercearia, é dinheiro que é injectado na economia! E o tempo de férias? Então agora os homens quando têm filhos gozam trinta dias?! A mulher é que pariu, é que sofreu, e o homem vai parar?! Lá que fossem oito dias, para ajudar a mulher com o bebé quando ele nasce! Os outros podiam ser substituídos por aumento de alguns ordenados! E quem não falta tem mais três dias de férias, porquê?! Então esta gente não pensa! Continuavam com os vinte dias e esses três a mais eram transformados em aumento salarial. Há um conjunto de coisas que se em vez de serem ócio fossem salários, todos ganhavam mais!

Consumiam mais, produziam mais?

Isso é o motor! Depois teria de haver campanhas de «consumam o que é português», «temos um país de categoria, não vá passar férias a outro», campanhas de sensibilização, de educação, para as pessoas gastarem. Não é preciso grandes doutores, grandes economistas para fazer isto. Só que fazem exactamente o contrário e estamos aqui! Isto preocupa-me porque tenho um negócio com 220 trabalhadores que vive desta economia, da economia real. A Foreva foi uma empresa que comprámos falida há cinco anos, tinha 160 trabalhadores, pagámos um milhão de contos a pequenos fornecedores que iam para a falência se não pagássemos, não fomos buscar dinheiro nenhum ao Estado, pusemos a empresa, que era um Titanic no fundo do mar, a navegar à vela! Empenhámos todas as nossas economias, não fomos buscar ajudas nenhumas quando o Estado andava para aí a dar dinheiro a torto e a direito a empresas falidas. Fizemos isto com o nosso suor, gastámos horas e horas a pôr aquela empresa direita. E agora vêm uns doutores quaisquer dizer «não, tem de se cortar, cortar, cortar».

Você acha que esses doutores, como lhes chama, os governantes, falta-lhes vir a este país real?

Não, não! Eles sabem! Estão é adesempenhar um papel. Alguém lhes disse: «Vocês vão ser zombies, não vão ouvir ninguém, não vão falar com ninguém, vão fazer isto assim e assim.» E os zombies estão a fazer isto, insensíveis a tudo e a todos. São autênticos zombies e querem transformar esta sociedade também em zombie. Não pode ser! As pessoas têm de reagir! A gente olha para o ministro da Economia, olha para o ministro das Finanças, e não vê ali homens com sentimentos. Vê zombies! Não sei se se pode governar um país assim, que é feito por milhões de pessoas.

O QUOTIDIANO

Como é um dia seu de trabalho? A que horas se levanta?

Normalmente, às seis e meia. O massagista acorda-me às seis e meia.

Começa o dia com uma massagem?

Às seis e meia, exactamente. Depois faço meia hora de tapete, tomo o pequeno-almoço...

Em casa? Mora aqui na zona de Guimarães?

Em casa. Moro a dez minutos daqui da fábrica. Moro, vivo aqui, sempre vivi! Tenho uma quinta e é lá que durmo agora, porque estou a fazer obras em casa. Depois tomo banho e vou para a cidade. Vou comprar o jornal, tomo um café e venho para a fábrica.

Que jornal é que compra? Não precisa ser simpático...

O Diário Económico. Alterno o Diário Económico, a maior parte das vezes, com o Jornal de Negócios. E compro o Diário de Notícias. Uma outra vez o Público, mas menos. Mesmo.

A que horas chega à fábrica?

Nove horas, nove e meia. Às vezes marco alguma coisa para tratar, quando tenho coisas na cidade, marco antes de vir para a fábrica. Mas às nove, nove e meia estou aqui.

Almoça aqui?

Não porque tenho sempre almoços com pessoas, clientes.

E jantar, vai jantar a casa?

Nunca janto em casa. Só ao fim-de-semana. É só trabalho, trabalho. Também tenho a Associação Portuguesa de Calçado [é presidente]. Já lá estou há anos, nem sei, dizem que estou para ganhar dinheiro, mas até os jantares pago do meu bolso. Dedico-lhe as noites. Chego a casa às onze e meia, meia-noite.

Só ao fim-de-semana é que pára?

O sábado e o domingo são dedicados à família. Família e amigos! Os da tropa, que nos encontramos para jogar uma suecada, vão a minha casa, estamos lá todos, vemos futebol, jogamos, fazemos um lanchezinho e depois cada um vai para a sua...

É do V. Guimarães?

Sou do Sporting, há muitos anos. Sou do Sporting e do Guimarães.

Quem eram as cinco pessoas que nunca dispensaria da sua vida?

A minha família, em primeiro lugar. Depois os amigos da tropa.

E aqui, dos seus colaboradores do trabalho?

Todos eles. Quem não é bom, sai. Isto é a descer! Mas os que estão cá não os dispenso. São todos bons.

Em média, quantas vezes vai ao estrangeiro por mês?

Já viajei muito mais, agora é menos. Uma vez por mês é muito. Às vezes há meses que faço duas viagens, ou três, mas depois passo dois ou três meses que não vou. Quando o Amílcar ainda não estava bem nisto, íamos sempre juntos para ali, para acolá. Mas depois ele começou a tomar conta.

Gosta de andar de avião?

Adoro!

Nunca apanhou nenhum susto?

Alguns! Mas os sustos fazem parte da minha vida. Se não apanhar um susto de vez em quando adormeço e torno-me estúpido.

Manolo Blahnick, Christian Louboutin, Jimmy Choo, são nomes famosos dos sapatos. Conhece?

Sei quem são, mas não os conheço.

E férias, tem?

Tenho. Nunca os vinte dias, mas oito dias, dez dias, isso sempre.

Cá em Portugal ou vai para o estrangeiro?

Sempre em Portugal e sempre no mesmo hotel, há trinta e poucos anos. O Alfamar, em Albufeira. Já sou mais dono daquilo... já passaram lá muitas administrações, alguns empregados é que ainda são de há 35 anos.

Também se levanta cedo?

Não, nas férias ponho-me a pé a tempo de tomar o pequeno-almoço, depois leio o jornal até às onze, onze e meia, vou à praia, dou uma volta. Continuo a ler os jornais, um livrito e depois almoço e vou para o quarto. Fecho-me e não quero que me incomodem!

Sesta?

Sesta, ver televisão, ler um livrito, brincar... mas não saio, depois do almoço não quero mais ouvir falar em praia, fecho-me no quarto a pensar, a ver, a ler. Só quero que me incomodem às oito horas para ir jantar.

Dos sítios todos que já visitou, dos países todos do mundo que já viu, qual o impressionou mais?

A China, pelo seu dinamismo. A força que as pessoas têm de ganhar dinheiro, de fazer negócio, de andar, de criar riqueza, de trabalhar. A Índia, pelo seu miserabilismo. Pela incapacidade que aquela sociedade tem de resolver os seus problemas de miséria.

Vai agora para o Brasil. Vai de férias ou em trabalho?

Vou em trabalho. Trabalho da APPICAPS, há um congresso mundial da indústria do calçado.

E tem negócios seus no Brasil?

Não, porque é impossível. Um país que cobra cinquenta por cento de imposto aos sapatos portugueses e que só paga quatro ou cinco por cento para pôr cá os seus em Portugal, é impossível.

E Angola?

Angola ainda é um país de grandes negócios. Feitos a nível do Estado. Vamos ter que esperar.

E encomendas especiais? O Luís Onofre já calçou a princesa Letizia, já mandou sapatos para a Michelle Obama.

Não é preciso ser gente famosa, quando é gente simpática, pessoas bonitas, elegantes, com pedigree... Já tivemos algumas parcerias, mas isso até é mais do sector comercial. A maior alegria que tive foi a Eunice Muñoz ter vindo aqui pessoalmente comprar Fly London. É uma senhora com muito pedigree, muita patine, portanto fiquei todo contente, tirámos uma fotografia. Uma pessoa como ela, vir de Lisboa aqui a Guimarães. Mas procuramos é servir o grande público. Os outros têm os seus códigos e eu próprio não me sinto muito bem com esses códigos.

Calça Fly London?

Trago Fly London nos pés. Mas são especiais para mim [mostra uns sapatos clássicos com o símbolo da Fly].

São muito modernos para uma pessoa tão conservadora?

Costumo dizer que me sinto mal nos stands, não paro lá muito tempo nas feiras porque aquela fauna que nos visita não é bem o meu estilo. Então piro-me. Mas gosto. Os italianos chegaram a dizer uma vez que nem conseguiam copiar o nosso modelo de botas de homem mais vendidos de sempre... De tão feios que eram.

E a sua mulher, usa-os?

A minha filha usa. A minha mulher não muito, que ela também tem os pés muito defeituosos, coitada, vê-se à rasca. Mas de vez em quando calça uns sapatinhos ou umas botas.

Tem apostado agora muito na tecnologia também, já ganhou prémios. É um homem de tecnologia, tem um iPhone, não vive sem telemóvel?

Infelizmente não, e a minha mulher é a principal culpada disso.

Porquê?

Porque diz que não devo usar isto, eu sou teimoso, então uso. Agora acompanha-me sempre. É pequenino e a gente está sempre a par, isto permite-nos estar na Índia e ver as vendas das lojas uma a uma, a que horas é que vendeu o quê, isto realmente é uma invenção...

É um homem de internet?

Não muito. Só o essencial, como ver as vendas. Ensinaram-me e pronto. Também tenho um iPad, comprei há pouco tempo. Ainda é melhor, porque a gente aqui faz um esforço para ver as letras...

Participa nas actividades da terra, é um homem de Guimarães?

Não conheço bem as pessoas de Guimarães. Conheço algumas, mas não sou aquele indivíduo que conhece todos. Mas sou bairrista, gosto do meu Vitória... Sabe, até aos 14, 15 anos, estive fora de Guimarães. Depois voltei mas vivi muito para o trabalho. A seguir fui para a tropa, estive quatro anos, um mês, um dia e duas horas fora. Quando regressei comecei a pensar nos meus projectos e também vivi muito fechado. Nunca fui um homem da terra. Fui sempre um homem do mundo.

Costuma ir à bola?

Não. Gosto muito de ver futebol.. mas na cadeira de casa, com um uisquezinho...

Quais são os luxos de que não prescinde?

Não tenho luxos! Não prescindo de ir ao café e ler o jornal. Não prescindo de ver o meu jogo de futebol em casa com os amigos e não prescindo de jogar umas suecadas com eles. Só isso.

PERGUNTAS DE ALGIBEIRA

O livro da sua vida?

Não tenho só um. O da solidão, do Gabriel García Márquez [Cem Anos de Solidão], que já o li duas ou três vezes e as lágrimas vêm-me sempre aos olhos, o Crime e Castigo [Fiódor Dostoiévski] e a Guerra e Paz [Liev Tolstoi]. Depois, o Equador, também gosto do Miguel Sousa Tavares. E do José Rodrigues dos Santos também já li. E há mais meia dúzia... As Vinhas da Ira, do Steinbeck, também é um livro comovente.

Uma cena de um filme que nunca esquece?

No meu tempo de infância era aqueles filmes de coboiadas, havia alguns que eram muito porreiros. Ainda hoje me lembra de alguns actores, embora uns fossem um bocado reaccionários, como era o caso... como é que se chama aquele?...

...John Wayne?

John Wayne, exactamente. Aqueles actores americanos... é um cinema lúdico, que tinha sempre a coisa do bom e do mau, são filmes que marcam. Recentemente há o Este País não É para Velhos [dos irmãos Coen] e o Milhão deDólares [Million Dollar Baby, de Clint Eastwood] que também achei muito interessantes. E há o Gata em Telhado de Zinco Quente do... esquece-me o nome dele! Há meia dúzia deles que me marcaram.

A última vez que chorou?

Não queria falar sobre isso.

O que é que ainda vê na televisão?

Futebol... E gosto muito da Quadratura do Círculo, vejo às vezes à noite, não em directo, quando acordo de noite. E para me rir um bocado, o Eixo do Mal. É lúdico, é uma forma de encarar a realidade, de criticar, mas é sempre interessante. E pouco mais.

O lema da sua vida?

Nunca fazer nada de que me arrependa mais tarde.

Uma música para namorar?

Não tenho esse espírito... [risos]

Um lema contra a crise?

Trabalhar.

Quantos minutos gasta a ler o jornal por dia?

Normalmente, leio dois, três jornais por dia. Para aí uma hora.

De quantos em quantos minutos é que vai ver o seu e-mail?

Quando toca! Vai tocando. Depois apago logo, se não apago...

Um lugar para passar a sua reforma?

Na fábrica!

Nos bastidores da entrevista

Fortunato Frederico

Chegar à fábrica da Fly London é quase tão difícil como não nos surpreendermos com o seu dono. Algures numa estrada sem saída entre Guimarães e Braga, quase ao lado de onde nasceu, está o sonho de um homem tipicamente português, minhoto, desarmante nas palavras e na simplicidade de quem tudo faz para não ostentar o facto de ter a oitava marca de sapatos mais vendida do mundo, reconhecida nos cinco continentes e por oitenta por cento das mulheres. E as surpresas, à medida que se dá a conhecer, são quase tantas quantas as associadas à descoberta, há cinco ou seis anos, de que a marca de nome inglês - que começou por vender-se primeiro lá fora do que cá dentro (ainda vende mais) - era nacional. E que os sapatos urbanos, cheios de design e cor, estranhos para muitos, não vinham de nenhum estilista rebuscado, nem de uma mulher, mas sim deste homem baixo e entroncado que dispara frases mortíferas e que um dia me espanta na televisão como presidente da associação do calçado.

Chega meia hora atrasado, acompanhado para mais um negócio, e cumprimenta todos os funcionários que encontra - garantirá mais tarde que conhece praticamente pelo nome os seiscentos funcionários, as suas famílias, as suas vidas. Vem de pullover verde, até porque nesse dia o seu Sporting tem mais um desafio europeu, e sapatos da marca (mas normalíssimos, só com o símbolo estranho da mosca, feitos propositadamente para si e para o seu conservadorismo), mas entre a disponibilidade total para a entrevista e as fotos falha a hora do jogo e não se perdoa por estar a mostrar ser tão mau sportinguista, saindo a correr para o gabinete, onde verá o jogo e despachará mais uma dúzia de papéis.

A sua vida é assim, a cem a hora, acompanhada por um moderno iPhone e até um iPad. Sabe apenas meia dúzia de palavras em inglês, uma estratégia, como explica, mas ensinaram-lhe a ir à net e ao mail onde vê o andar dos negócios, as vendas loja a loja a todo o minuto, da China à Alemanha. E isso ele sabe, fazer negócios.

Uma aprendizagem que vem do berço. Filho sem pai aos 15 dias, que a mãe teve de dar para educar a uma freira, a freirinha sua segunda mãe, entra no seminário onde aprende a filosofar e a ser competitivo. Depois, dois momentos difíceis da vida definem-lhe o futuro. Em Angola, para onde a tropa o levou, de entre o grupo dos que jogavam sueca e o dos que discutiam a guerra - guardou os jogos de cartas para agora - e optou pelo dos pensadores. Foi lá que sonhou e delineou como iria ter a sua própria marca, que ganhou o nome dessa terra de sonhos, Kyaia. Uma tragédia familiar, que há dez anos lhe retirou um filho de 18 e deixou a filha com marcas psicológicas, fê-lo dedicar-se a cem por cento ao negócio, todos os dias, das seis à meia-noite, só os sábados e domingos é que são exclusivos da família e amigos. Por isso tanto vai sem problemas à fábrica e lixa sapatos junto ao Manel e ao Zé, como desce desenvolto até à loja onde já trabalha a filha de um dos seus empregados cuja vida sabe de cor, ou se mete num avião rumo ao Brasil ou à China. Ele é a imagem viva do lema da Fly, dont" walk, fly. Ele não anda, voa.

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