Zombies, anjos e unicórnios
Junto da catedral de Przemysl há uma nova e discreta estátua em honra do anjo guardião da Polónia. Na fachada da construção medieval da pequena cidade sobressai a representação de um unicórnio. Ao observar os estudantes e migrantes chegados a Medyka, do lado polaco da fronteira com a Ucrânia, uma outra imagem mitológica vem à mente e não está associada à pureza.
Quais mortos-vivos, os universitários deambulam sem destino, de olhos vítreos. Alguns tiritam, outros estão tão extenuados e em choque que os sons ficam atravessados nas gargantas. Atordoados com a guerra russa, com a longa jornada, e vergados às intermináveis filas para franquear o posto fronteiriço, com frio, fome e sede.
Dos estudantes fugidos de Karkhiv, africanos, levantinos e asiáticos - uma comunidade de dezenas de milhares -, ouvimos relatos pouco abonatórios para as forças de segurança ucranianas. Descontando o nervosismo de uns e de outros e ainda o facto de as mulheres e crianças terem prioridade na retirada em zonas de guerra, as acusações de racismo e discriminação não deixam de ser um sinal preocupante para um povo vítima da megalomania de Putin.
A beata e outrora sonolenta Przemysl, a cidade mais perto da fronteira, foi sacudida pela chegada de dezenas de milhares de mulheres e crianças ucranianas, mas também por estudantes e migrantes de outras paragens. Os habitantes e os polacos em geral mobilizaram-se para acolher os ucranianos e pude testemunhar a forma empenhada como têm partilhado carro e casa e recolhido donativos.
A corrente de solidariedade teve o mérito de unir por um momento uma sociedade rasgada em duas, a tendência ultraconservadora e nacionalista, representada no governo de Morawiecki e na presidência de Duda, e a tendência europeísta e moderada, que tem como líder o ex-presidente do Conselho Europeu Tusk. Com os estados bálticos, Varsóvia tem estado na linha da frente do apoio a Kiev. Inclusive na iniciativa de levar a Ucrânia para o clube europeu de forma mais lesta, o que não deixa de ser curioso. A Polónia - como a Hungria - está num braço de ferro com Bruxelas e os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência em suspenso. O estado de direito está ameaçado devido aos ataques ao poder judicial, ao pluralismo da comunicação social e às garantias das minorias. Um trilho cada vez mais incompatível com os valores subscritos pelos 27 estados-membros.
A ambivalência dos polacos (que há meses recusaram a "invasão" de migrantes e refugiados alimentada pela Bielorrússia), visível na falta de comunicação para com os estudantes, atingiu outro patamar quando um grupo nacionalista demonstrou a pureza a que aspiram ao entoar cânticos xenófobos e ao agredir estudantes indianos junto da estação de Przemysl.
A forma como a Polónia e, por extensão, a UE acolher os estudantes universitários é também um momento definidor. Trazemos os zombies para a (nossa) vida ou ajoelhamo-nos perante os anjos e unicórnios do nacionalismo serôdio?
Jornalista