Zé Pedro. O espírito do rock"n"roll

O fundador dos Xutos & Pontapés morreu aos 61 anos. Uma vida intensa, sob o signo do rock"n"roll
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Vivia o presente, amava a música e enfrentava as dificuldades como desafios. No dia 4 de novembro subiu pela última vez ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e ouviu uma plateia imensa gritar-lhe pelo nome "Zé Pedro". Depois, agradeceu: "Obrigado também a todos os que ontem gritaram o meu nome e fizeram com que tivesse força para continuar naquele palco até ao fim". Nessa mensagem aos fãs, no facebook, escreveu ainda, assim mesmo, em maiúsculas: "Amanhã começo um novo tratamento e garanto que é para GANHAR. EU SEI LUTAR E ACREDITO."

Não ganhou, soube-se ontem.

Rolando Rebelo não esteve lá, no derradeiro concerto. O fã, que se tornou biógrafo da banda [Aqui Xutos & Pontapés!, Oficina do Livro, 2014] e ganhou um amigo para a vida, foi durante anos a sombra dos Xutos. Não quis ir ao Coliseu. "Eu tinha ido vê-los cá em baixo no Algarve, na Fatacil e vi o concerto cá de longe. Estive com alguma parte da comitiva mas fiquei atrás. Vi que o Zé estava fraco, estava magro e estava com receio daquilo que iria ver. Quando os Xutos começam a tocar a última música, A Minha Casinha, disse "eu tenho de ir lá para a frente" e comecei a furar caminho e cheguei mesmo lá à frente e gritei "Zé, Zé". E o Zé repara em mim e começamos a trocar olhares e acenos. Quando acaba o concerto, recebo uma mensagem do Zé a dizer "pá gostei muito de te ver". Cheguei a casa triste e disse que não queria ir, não queria ir a Lisboa".

Rolando, 50 anos, é um dos muitos amigos que Zé Pedro - Zé para os amigos - semeou e regou. Rolando chegou-lhe à vida num dia em que andava a preparar uma biografia dos Rolling Stones e quis entrevistar o guitarrista dos Xutos. "A primeira vez que eu estou com o Zé Pedro, tratei-o por você. Ele disse-me "acaba lá com o você que o você é muito pouco rock"n" roll"". Tinha meia hora para a conversa, acabou em três. Na realidade acabou numa amizade que duraria a vida toda.

"Perdi um amigo", diz esta quinta-feira ao DN. Por vezes escapavam-lhe as lágrimas, lá do outro lado. O mesmo foi acontecendo com outros amigos, homens e mulheres feitas que perderam "o Zé". Como o coreógrafo Rui Horta, que conheceu o músico nas férias na Praia do Vau. "As nossas famílias tinham casa na praia. Eram famílias muito grandes, a Santos Reis [de Zé Pedro], os Horta, os Valentim de Carvalho, os Lopes de Rosário, nós éramos oito e o Zé, eram sete irmãos. Aquele tempo era um tempo de uma grande poética, era uma espécie de selvajaria poética, aceite, tudo era possível para aquele grupo de miúdos do qual fazíamos parte. Ficávamos assim entregues a umas tias e a uns parentes afastados durante as férias de verão, os pais vinham passar umas semanas. Aí [o Zé Pedro] já tocava guitarra, à volta da fogueira, na praia, à noite. Os grandes momentos do Verão eram as fogueiras à noite, na praia, em que podiam ir os pequeninos e os graúdos, éramos muitos, mesmo, e o Zé tocava. A música que na altura ouvíamos eram os Doors, música folk e o início do rock, isto são memórias de antes do 25 de Abril".

Rui Horta fala de felicidade e de "um tempo que já não existe", até porque o Vau já desapareceu. "Um paraíso que se perdeu porque agora aquilo está cheio de hotéis". Também o Bairro Alto do Frágil e do Rock House já não existe. O labirinto de ruas que Zé Pedro cruzava na noite já não é o mesmo. Nem Santos, onde, com Alex Cortez, dos Rádio Macau, fez nascer o Johnny Guitar. O 77 da Calçada Marquês de Abrantes onde efervesceu a música portuguesa e onde Zé Pedro, praticamente viveu naqueles seis anos.

Foi em 1977, durante um inter rail, que conseguiu ir a um festival punk que o marcou. Acontecia numa praça de touros em França, em Mont-de-Marsan. "Acabámos por ir ao festival, que virou o meu conceito musical. Eram dois dias de festival punk e um dia extra de Lou Reed, giríssimo. Não tinha dinheiro para tudo, mas lá consegui entrar à borla. Era uma praça de touros, numa aldeia pacata. Nós chegámos na quarta-feira e o pessoal andava todo a fechar-se em casa, a meter trancas nas janelas. Na quinta começam a chegar as tribos e era alucinante, ficámos com a aldeia por nossa conta! Até tomávamos banho na fonte. Vi bandas fabulosas: os Police, num dos seus primeiros concertos, ainda com o guitarrista [Henry Padovani, antecessor de Andy Summers], mas os mais fascinantes para mim foram os Clash, que eram cabeças de cartaz", descreveu em entrevista ao Blitz em 2016, quando completou 60 anos.

Um ano depois da loucura do festival na aldeia francesa, nasceriam os Delirium Tremens (Zé Pedro com Zé Leonel e Paulo Borges), que passariam a Xutos & Pontapés, já com a entrada de Kalú e de Tim para o lugar de Paulo Borges. A maior banda portuguesa começou assim, com um grupo de gente que queria fazer música e que se estreia em palco nos Alunos de Apolo em janeiro de 1979. Estavam a caminho dos 40 anos, números redondos. Esta quinta-feira escreveram assim, no facebook: "Queridos Amigos, o nosso Zé Pedro deixou-nos hoje. Foi em paz. As cerimónias fúnebres serão sábado ao princípio da tarde". Menos de três horas depois já tinha sido partilhada mais de dez mil vezes e tinha mais de quatro mil comentários.

Zé Pedro sabia que houve alturas em que viveu demais, no limite. "Gosto muito da minha vida. Podia ter-me poupado um bocadinho", assumia, nessa conversa de 2015 com Ana Sousa Dias. Falaram-nos dos excessos, da doença (hepatite C), dos projetos que tinha, da música. A doença tê-lo-á ajudado a fazer balanços. "É um sobrevivente? Sou. Mas a cabeça também tem de ser alimentada, filtrando o que está à nossa volta. Hoje em dia, tenho a certeza de que o amor é a coisa mais importante da vida." (Pergunta dos jornalistas do Blitz).

Luís Montez é um dos que lembram a faceta humana do músico. O dono da Música no Coração lembra a forma insólita como conheceu Zé Pedro: "Eu trabalhava na Rádio Comercial, fazia madrugadas, e àquela hora tinha a ousadia de passar punk-rock português porque partia do princípio que não havia muita gente a ouvir. E o Zé Pedro ouviu e quis conhecer quem era o maluco que andava a passar o álbum Cerco [lançado em 1985]. Apareceu-me lá na rádio para agradecer. Ele tinha um coração do tamanho do mundo e a gratidão era também um valor que tinha muito alto."

Henrique Amaro, da Antena 3, sublinha-lhe o sorriso e a importância no mundo da música portuguesa: "Andamos a viver a morte dos outros, dos ícones, dos pilares da nossa "igreja" há muito - David Bowie, Kurt Cobain - mas dos nossos, dos nossos músicos elétricos, é uma experiência nova. Felizmente não temos tido essa experiência. Até agora, assim próximo desta realidade, só o João Aguardela [dos Sitiados], o João Ribas [dos Censurados] e agora, muito, o Zé Pedro", disse.

Com Zé Pedro partiu, afinal, parte da nossa adolescência. O guitarrista e fundador dos Xutos e Pontapés, morreu em Lisboa aos 61 anos. Há uma eterna juventude nas suas frases -"no punk, ninguém pensava que estava a modificar as coisas, queríamos era vivê-las" (ao Blitz); "A andar na rua, a ir às compras, seja o que for, eu também sou o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés. Tenho esse carimbo na testa" (entrevista ao DN pela mesma altura, janeiro de 2016). O velório decorre esta sexta-feira a partir das 16.00 nos Jerónimos, sábado às 14.00 realiza-se a missa de corpo presente sendo o funeral e a cremação reservados à família. Com Marina Marques

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