XXIV – Nova invasão castelhana e a batalha de Aljubarrota
O fracasso do cerco de Lisboa obrigou o rei D. João I de Castela a regressar ao seu país, mas a sua firme vontade de submeter Portugal continuou inabalável.
Restabelecido da doença, inicia os preparativos para a invasão de Portugal e envia contra Lisboa doze galés e vinte naus.
Quando concluiu que já se reuniam as condições necessárias para dar início à sua projectada invasão, ordenou a D. Pedro Tenório, arcebispo de Toledo, que fizesse uma incursão pela fronteira de Cidade Rodrigo, decidindo ele próprio entrar por Badajoz.
Estando Lisboa já cercada pelo mar, ele pretendia agora avançar contra ela, com o grosso do exército, penetrando por Elvas. A solicitação para a actuação das forças do arcebispo mais ao norte, na Beira, deviam ser apenas para dispersar as forças portuguesas, porque a sua estratégia visava, fundamentalmente, isolar Lisboa, seu alvo principal.
O sucesso das acções do condestável Nuno Álvares Pereira e do rei português, no Minho, impediram qualquer invasão simultânea das forças castelhanas a partir de Galiza.
É admissível que essa forma de investida diversificada estivesse nos seus planos iniciais, todavia vai ser substancialmente alterada devido à precipitada entrada em Portugal de João Rodrigues Castanheda e de outros castelhanos, que provavelmente a desconheciam.
Esses invasores, - sem qualquer oposição dos desavindos fidalgos da Beira, que teimosamente se mantinham impávidos e serenos perante o inimigo -, foram batendo a terra, roubando-a e saqueando-a, com grande à-vontade, até que João Fernandes Pacheco decidiu pôr cobro à situação.
Depois de várias e insistentes diligências, conseguiu conciliar os inimizados Gonçalo Vasques Coutinho e Martim Vasques da Cunha.
As agrupadas forças portuguesas desafiaram então o inimigo a uma batalha campal, infligindo ao invasor uma pesada derrota em Trancoso, onde a maior parte dos dirigentes castelhanos encontrou a morte.
A mensagem dessa vitória, recebida pelo rei em Guimarães, deve ter tido um idêntico efeito animador e de bom presságio, como a que produziu o conhecimento do triunfo da Batalha de Atoleiros, quando Lisboa esteve cercada.
Este sucesso português permitiu propagandear a ideia de que afinal os castelhanos, nos momentos cruciais e decisivos dos confrontos, saíam desbaratados e humilhados.
Indiferente a esses fracassos, com o intuito de executar os seus planos, o rei de Castela cerca Elvas, cuja rendição esperava em quinze dias. Porém os elvenses, longe de mostrarem fraqueza, comandados por Gil Fernandes, escaramuçam frequentemente com os assediantes e, afoitamente, roubam e introduzem no castelo as azémolas, com mantimentos e outras coisas, destinadas ao inimigo.
Estas inesperadas contrariedades levam o monarca a mudar os seus planos iniciais.
Levanta o cerco de Elvas e dirige-se para Cidade Rodrigo, onde reúne o seu conselho e opta, definitivamente, pela invasão imediata.
Porém nem todas as notícias lhe foram desanimadoras, recebe também duas agradáveis, a da destruição da récova portuguesa, que transportava mantimentos de Elvas e de Estremoz para Arronches e a da chegada do reforço naval contra Lisboa, com mantimentos, artifícios de madeira e outros equipamentos para a fabricação de instrumentos de guerra.
Partindo de Cidade Rodrigo, entra em Portugal pela comarca da Beira, conquista o Castelo de Celorico da Beira, chega a Coimbra e dali parte para Leiria, onde a sua hoste é reforçada, quer com partidários das localidades que tinham tomado sua voz, quer com efectivos das galés e naus que cercavam Lisboa.
Após o insucesso de Elvas, se entrasse pela fronteira alentejana, corria o risco de desproteger a sua retaguarda, visto que no seu itinerário ficariam castelos portugueses adversos. Seguindo o percurso da Beira, passando por Coimbra, teria assegurado em Leiria, Santarém e Sintra, três pontos de apoio, e o caminho para Lisboa praticamente livre.
Era para a Lisboa enfraquecida que apontava as suas armas, acreditando que conquistando-a seria senhor de Portugal.
Todavia a sua conduta, nesta segunda invasão, foi muito diferente da primeira. Além de prender pessoas, cometeu crueldades contra homens, mulheres e crianças, mandando decepar as mãos e cortar as línguas, o que o desonrava e fazia aumentar o ódio da população contra si. Também queimou a igreja de São Marcos, em Trancoso, local onde se deu a batalha.
Procedia dessa maneira por vingança, não só porque tinha sido obrigado a partir de Lisboa sem a ter conquistado, como também porque desta vez ninguém tomava sua voz, nem se aproximavam dele para o servir. Este comportamento punitivo não só o prejudicava como também beneficiava e unia os partidários do rei português.
Conhecedor do cerco naval e da intenção de D. João I de Castela de querer conquistar Lisboa, em Guimarães, D. João I de Portugal, em conselho apenas com o condestável, decide enfrentar o seu homónimo em batalha campal.
Com intenção de juntar forças, percorre várias cidades e vilas e, embora tivesse determinado que o ponto de encontro da hoste portuguesa seria em Abrantes, dirige-se mais para o sul por duas razões: para dar cobertura às forças que Fernão Rodrigues de Sequeira, fronteiro-mor de Lisboa, iria trazer daquela cidade, conjuntamente com efectivos ingleses, a fim de se juntarem à hoste, e porque receava que a forte guarnição castelhana de Santarém pudesse vir a inquietar Nuno Álvares Pereira e a sua escolta, no planeado regresso do Alentejo.
Em Abrantes, os tensos dias decorrem cheios de expectativa até que chega a hora dramática da tomada da decisão definitiva, perante o inimigo que se aproximava cada vez mais.
Embora o rei português já tivesse acordado, com Nuno Álvares Pereira, dar batalha ao rei inimigo, talvez porque algumas dúvidas e incertezas pairassem no seu espírito e continuassem a inquietar a sua consciência, ou porque novos dados, entretanto surgidos, precisassem de ser questionados e ponderados, ou ainda porque tal deliberação se revestisse de importância vital, o sempre previdente rei reúne o seu conselho.
Este diverge nos seus pareceres: a maioria era contra e a minoria a favor. Porém, antes da chegada de Nuno Álvares, já havia consenso entre todos: devia-se evitar a batalha por ser muito duvidosa e de grande perigo.
Perante essa posição unânime, alcançada na sua ausência, o condestável não esmoreceu e argumentou que, perdida Lisboa, perdido seria o país, daí decidir manter a sua firme e inabalável determinação, independentemente da deliberação dos outros.
Face ao impasse, no dia seguinte, sem dizer nada a ninguém, partiu com as suas forças a caminho de Tomar, para onde vinha o rei de Castela.
Esta atitude do condestável produziu o efeito desejado no ânimo do monarca. Este, depois de breve justificação, resolve, definitivamente, enfrentar o rei de Castela em batalha campal.
As duas forças reencontram-se em Tomar, onde tanto o condestável como o rei português procuram reunir informações sobre os castelhanos. Daqui a hoste dirige-se para Ourém e dali para Porto de Mós, onde se lhes juntam os efectivos do abade de Alcobaça enviados com o seu irmão Martim Dornelas, e dali, na madrugada do dia 14, a hoste segue para o local da batalha onde se iria decidir a continuação da existência de Portugal como país independente.
Do lado inimigo, para completar o cerco naval, a que a capital estava sendo sujeita, faltava a conclusão da operação terrestre. Daí que o risco da batalha tenha resultado duma estratégia que pretendia pôr cerco a Lisboa.
No dia 14 de Agosto de 1385, a hoste portuguesa esteve firmemente postada entre Leiria e Aljubarrota, disposta a interceptar o inimigo, cujo objectivo era cercar Lisboa, forçando-o assim a dar batalha campal.
A hoste invasora, quando se assomou aos portugueses, já vinha reforçada com contingentes dos castelos de Estremadura, da marinha que cercava Lisboa, e de outras localidades suas partidárias.
O rei de Castela não podia evitar a batalha porque, embora não reconhecesse o seu homónimo como rei de Portugal, seria desprestigiante e desonroso, para si, contornar as forças deste, colocadas em formação de combate, sem as enfrentar em batalha campal. Acresce ainda que, para levar a bom termo a estratégia previamente definida, de pôr cerco a Lisboa, não podia ter na sua retaguarda uma hoste que persistentemente o incomodaria até o obrigar a dar batalha. Naquele momento tinha pela frente a oportunidade de derrotar a concentração das forças adversárias e consumar os seus propósitos.
Dada a disparidade das forças em confronto, o receio entre os portugueses era compreensível. Talvez seja esta a razão da ausência do alferes-mor, Gil Vasques da Cunha, e de outros fidalgos da Beira.
Contudo, esta comarca não deixou de assinalar a sua presença com forças de João Fernandes Pacheco e de Egas Coelho.
Nem tudo foram actos de coragem durante a batalha, também houve quem se atemorizasse, como os apavorados peões, que tentaram fugir para Porto de Mós, e Gil Martins Doutel e Martim Chamiço, acusados de deserção.
Se do lado português a disposição era de vencer ou de morrer, do lado castelhano muitos acreditavam na infalibilidade do resultado, outros não. Contudo, na prática, tudo se complicou, porque quem demonstrou não estar à altura do evento foi o próprio rei de Castela. Muito embora acertadamente aconselhado pelos seus conselheiros, mais experimentados, deixou-se facilmente enlear pelos portugueses mais excitados e foi incapaz de impedir a precipitação dos acontecimentos.
Do menosprezo pelo inimigo e da incompetência e arrogância de alguns dos seus quadros dirigentes, resultou a derrota de Aljubarrota, mau grado a tentativa frustrada de ataque à retaguarda portuguesa por Gonçalo Nunes de Gusmão, Mestre de Alcântara. Porém a responsabilidade deste histórico desastre coube, em primeiro lugar, ao rei de Castela, como escreveu C. Ximenez Sandoval.
Não podemos imaginar, como metodologia, que um exército como o castelhano pudesse entrar em batalha sem uma estratégia de ataque. Que ela existiu não pode haver dúvida, em virtude do nosso conhecimento dos movimentos de tropas que precederam o embate.
A estratégia engendrada pelos castelhanos tinha, eventualmente, por finalidade, romper ao meio a vanguarda portuguesa, de modo a separar a frente portuguesa em duas partes assim como desmantelar ou dissolver as duas alas de suporte lateral. Desta maneira, cada uma delas e metade da vanguarda portuguesa não só ficariam divididas entre a vanguarda castelhana e as alas castelhanas, como enfraquecidas na sua coesão. E como do lado exterior das alas portuguesas o espaço de manobra era diminuto, estas, ou se sujeitariam a ser esmagadas pela própria vanguarda portuguesa, ou seriam empurradas, ou, ainda, teriam de enfrentar desordenadamente as forças
castelhanas sem as poder assim suportar dado o número de soldados que as compunham. Foi por este motivo que os castelhanos concentraram o grosso das suas forças na vanguarda, esperando com isso desmantelar as alas.
Se esta estratégia resultasse, em vez dos castelhanos teriam sido os portugueses escorraçados dos seus lugares e mortos um a um. E para que ela resultasse, era necessário que as alas portuguesas não tivessem tempo para se proteger com defesas que poderiam improvisar durante a noite. Daí que o rei de Castela tenha optado por não esperar pelo dia seguinte para aceitar o desafio da batalha.
Ao contrário dos castelhanos, cuja disposição táctica dificultava e mesmo impedia a utilização das alas, por razões que acabamos de apontar, os portugueses puseram extremo cuidado no reconhecimento do terreno, nas armadilhas e nos fossos aprontados, na distribuição dos efectivos e na ordenação da batalha. A vanguarda, a retaguarda e as alas da hoste foram dispostas no terreno como um bloco. A falta de duzentos homens de armas nas alas foi suprida pela elasticidade da formação. Deste corpo homogéneo, os seus elementos podiam desdobrar-se e movimentar-se rapidamente, conforme as necessidades de combate, de forma a colmatar possíveis brechas ou a resolver situações imprevistas ou mesmo previsíveis. Foi o que de facto aconteceu com o socorro que as duas alas e a retaguarda prestaram à vanguarda, rota pela violência inicial do ataque castelhano, no momento mais decisivo da batalha.
A disciplina portuguesa era de tal forma rigorosa que os corpos da hoste, devido à mudança da disposição da frente de combate castelhana, chegaram a trocar de disposições passando ordeiramente a vanguarda para a retaguarda, operação esta muito difícil de realizar e ainda mais quando efectuada diante das forças inimigas.
O próprio rei também revelou ser um bom estratega militar, porque não só revistou e louvou a boa disposição das forças no terreno como demonstrou saber qual a ordem de prioridades a seguir, numa batalha campal. Só pediu ao seu condestável que acorresse aos peões da retaguarda, que estavam em dificuldades, apenas depois da vanguarda castelhana estar desbaratada e posta em fuga. Este socorro do condestável foi importante porque impediu que as alas fossem atacadas, simultaneamente, de lado e de trás.
Pormenor não menos importante, principalmente se considerarmos a época de crise em que se vivia e a forte religiosidade do povo português, é o facto do próprio serviço religioso não ter sido descurado, havendo clérigos que davam a comunhão, garantindo assim a salvação. Acresce ainda que as ideias que se difundiam faziam com que muitos acreditassem que esta batalha representava também uma autêntica cruzada do verdadeiro papa de Roma contra o herege de Avinhão.
Do condestável e do rei nunca faltaram palavras de encorajamento, antes e nos momentos mais difíceis da peleja, já que eles acompanhavam e lutavam ao lado dos seus companheiros de combate.
Existem, na realidade, variadíssimas razões ou somatório delas que podem ser apontadas para compreender a vitória portuguesa na batalha de Aljubarrota. É de realçar e evidenciar aquela que valoriza a consciência que tinham os portugueses de que naquela batalha se decidia a independência de Portugal. Eles sabiam que, destroçadas aquelas forças, a quase esgotada Lisboa seria presa fácil e Portugal inteiro uma questão de tempo.
Com essa vitória, D. João I de Portugal ganhara duplamente a coroa portuguesa, de direito em Coimbra e pela força das armas em Aljubarrota.
O derrotado rei castelhano foge pressuroso, deixando no terreno da batalha e nas terras circunvizinhas o rasto da sua derrota.
Como seu reflexo imediato uns abandonam os castelos, outros fogem, outros ainda negoceiam a rendição. O condestável aproveita a ocasião para passar da defensiva à ofensiva. Invade o território inimigo e vence-os na batalha de Valverde.
Depressa o cerco naval a Lisboa é levantado e, com o tempo, todo o território nacional é recuperado. Porém só em 1411 as pazes definitivas com Castela vão ser celebradas.
Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.