XXIII – As Cortes de Coimbra de 1385 e o futuro de Portugal

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Para além da eleição de D. João I, como rei de Portugal, que mais nos informam as Cortes de Coimbra de 1385?

Com uma rápida leitura dos vinte e quatro capítulos gerais daquelas cortes é possível aferir as alterações ocasionadas na sociedade portuguesa de Dezembro de 1383 a 6 Abril de 1385, data que põe termo ao interregno, porque é, precisamente, nesse dia que D. João I é aclamado rei de Portugal.

No que respeita aos conselheiros reais, os procuradores das cidades e vilas aconselharam o rei a seguir o modelo inglês, propondo alguns nomes, para a participação no Conselho Real, dos representantes de quatro estados: prelados, fidalgos, letrados e cidadãos. Esse aconselhamento foi aceite e seguido pelo rei D. João I de Portugal.

Se compararmos a composição dos membros desse Conselho Real, por si escolhidos de entre os vários propostos, com o Conselho do Mestre de Avis, saído logo após o início da revolução, em Dezembro de 1383, verifica-se que a diferença é notória.

Se no Conselho do Mestre de Avis não fazia parte qualquer nobre, no Conselho Real vão fazer parte dois nobres.

Se no Conselho do Mestre de Avis faziam parte dois homens bons letrados, procuradores dos mesteirais, povoadores e moradores da cidade de Lisboa, no Conselho Real não há qualquer referência àqueles procuradores.

Se o retrocesso é visível quanto à presença das classes mais desfavorecidas, em relação ao período mais aceso da revolução, no cômputo geral, continua a fazer-se sentir um progresso assinalável em relação à governação fernandina.

As classes tradicionalmente dominantes, o clero e a nobreza, só têm, no seu total, três representantes no Conselho Real, enquanto a classe tradicionalmente dominada, o povo, tem quatro representantes, um de cada uma das cidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora.

A maior novidade reside no avanço dos legistas, que se dão ao luxo de criarem para si, em Coimbra, um novo estado, o de letrados. Se os

considerarmos mais ligados ao povo do que ao clero e nobreza, teremos sete representantes populares, contra três, um do clero e dois da nobreza.

Apesar do novo Conselho Real ter uma composição marcadamente de aristocracia popular, a Casa Real, com a presença de uma percentagem bastante superior da nobreza compensa o desequilíbrio existente: Nuno Álvares Pereira foi eleito condestável e seu mordomo-mor, Álvaro Pereira, marechal da hoste, Gil Vasques da Cunha, alferes-mor, João Fernandes Pacheco, guarda-mor, Rui Mendes de Vasconcelos, meirinho-mor da comarca de Entre-Douro-e-Minho, e houve muitas outras nomeações de nobres, cujos nomes seria fastidioso mencionar, para ocuparem os cargos oficiais mais importantes do reino.

Contudo, as Cortes de Coimbra de 1385 assinalam outros progressos significativos das classes desfavorecidas.

Nela se condena a governação fernandina, que era favorável à nobreza.

Os fidalgos e os seus acostadiços são impedidos de serem corregedores, os seus abusos são cerceados e os seus soldos controlados.

Também se conseguem várias promessas do rei, designadamente: a de não fazer a guerra, paz ou moedas sem acordo dos povos; a de convocação de cortes anuais; a de manutenção dos usos, costumes e foros populares; a de possibilidade de incorporação das pequenas localidades nas grandes cidades e vilas; a de proibição do regresso de funcionários fernandinos; a de não obrigar a casar contra a vontade; a de não lançamento de mais pedidos, sisas e outros encargos pecuniários, salvo as quatrocentas mil libras prometidas para o sustento da guerra; e a de levantamento de sisas gerais e especiais.

Se mais não avançaram as classes desfavorecidas, só o facto de poderem pagar as dívidas contraídas em moeda corrente, muito desvalorizada, foi sem dúvida, pelo menos, uma conquista notável, porque prejudicava grandemente os credores que, de certeza, não eram os pobres.

Embora nas Cortes de Coimbra se tenha procurado diminuir os efeitos dos males provocados pela repressão fernandina, exercida contra os populares que se manifestaram contra o casamento do rei D. Fernando com D. Leonor, é notório que naquelas cortes, os mesteirais, a arraia-miúda e os ventres ao sol ficaram mais distanciados dos tempos áureos da revolução.

Nelas foi exigida a extinção de bandos armados, a presença de justiças mais vivas e atrevidas, a repressão contra os prevaricadores da nova ordem institucionalizada, a proibição dos processos de intenção, o levantamento de amnistia contra os assassinos e o fim dos comissários, porque se dizia que nem todos eram dignos.

Por isso, pedia-se que as cartas de crenças «as levem em escripto assinada per vós», e porque as cartas em branco causavam muitos males, solicitava-se que não se passassem mais cartas em branco, «ca muytos malles se fizerom em estes regnos per eles» (Valentino Viegas, Lisboa. A Força da Revolução (1383-1385); livros Horizonte, documento número 8, pp. 241-252).

Contudo, apesar da eleição de novo rei, os portugueses continuavam divididos. Nem todos aceitavam esta eleição. Muitos ainda consideravam válido o contrato de casamento de Salvaterra de Magos. Estas forças de impugnação, comandadas pelo rei de Castela, ocupavam parte do território nacional e acreditavam que ainda era possível destronar D. João I de Portugal.

Por isso, indiferente à eleição coimbrã, o rei de Castela, que continuava a tratar, desdenhosamente, o rei português por Mestre de Avis, tentava manter e alimentar a firmeza da esperança daqueles seus partidários, acelerando os preparativos da prometida invasão.

A análise documental leva-nos a concluir que eram três os objectivos traçados pela revolução portuguesa:

1. Impedir a fusão da coroa portuguesa com castelhana;

2. Garantir que o sucessor do rei D. Fernando fosse encontrado na linhagem real portuguesa;

3. Recuperar a integridade do território nacional.

É verdade que a coroa portuguesa não foi ocupada pelo infante D. João, como inicialmente se desejara mas, por razões apontadas nos artigos anteriores, a sucessão coube a seu irmão, Mestre de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I de Portugal. A coroa manteve-se dentro da linhagem real portuguesa, frustrando assim as intenções da rainha D. Leonor que, conforme declarações de Afonso Eanes de Évora, pretendia pôr cobro à linhagem real e sujeitar os Reinos de Portugal e do Algarve a Castela.

Com D. João I de Portugal, à frente dos destinos do país, impediu-se a fusão das duas coroas e garantiu-se que os reinos de Portugal e do Algarve se mantivessem «hisentos sobre ssy».

Alcançados os primeiros dois objectivos, faltava realizar o terceiro que era o de recuperar o território português em posse do inimigo. Era, pois, necessário lançar, urgentemente, uma primeira ofensiva, com vista a fazer regressar à coroa portuguesa pelo menos algumas parcelas do seu território, antes que a planeada invasão castelhana se concretizasse.

A fim de materializar esse objectivo, somos de opinião que o rei tenha feito, na cidade de Coimbra, uma recomendação aos portugueses, no sentido de reconquistarem toda a terra portuguesa em posse do inimigo e, se possível, conquistarem alguma parte do seu território.

Esta nossa convicção é fundamentada na doação efectuada, no dia 13 de Abril de 1385, a favor de Gonçalo Vasques Coutinho de «todollos castelos E villas cercadas que elle puder cobrar E auer de nossos jmigos assy em estes regnos como nos de castella per qualquer guisa que os elle puder tomar E cobrar deles» (ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro I, fls. 133-133 v.; Místicos, Livro I, fls. 111-111 v.).

Ao rei português importava aproveitar a ausência do seu homónimo castelhano e lançar a primeira ofensiva no norte, de forma a controlar uma zona que defendesse a cidade do Porto duma nova incursão inimiga, vinda da Galiza, como acontecera no ano anterior.

Também aqui se constata que, para se ocupar o território era necessário conquistar os castelos por serem centros militares do poder senhorial e guardiães do espaço territorial que os circundava.

Antes de executar esse plano, no intuito de assegurar a fidelidade do castelo de Coimbra, pede a Vasco Martins de Melo para tomar aquele castelo, na ausência de Gonçalo Mendes de Vasconcelos, tio da deportada rainha D. Leonor, e solicita ao condestável que, com a ajuda da cidade do Porto, ponha cobro ao novo cerco marítimo a que Lisboa estava a ser sujeita.

Dada a impossibilidade de concretização desse intento, Nuno Álvares Pereira deve ter posto em execução o plano de alternativa, antecipadamente delineado pelos dois.

Sem divulgar aos seus homens o seu itinerário, o condestável vai dormir a Leça e toma o caminho de Neiva, cujo castelo é conquistado após breve combate.

Porém, antes mesmo desta conquista, e apesar de esta comarca estar dominada por alcaides fiéis ao rei de Castela, o contingente português pôde verificar que nem todas as guarnições militares apoiavam o inimigo porque, naquele curto percurso, entregaram-se a Nuno Álvares Pereira quarenta bons escudeiros, uns galegos outros portugueses, e muitos homens de pé. A este bom prenúncio vem a suceder a oferta de cavalos, feita pela população, para os homens do condestável.

No dia seguinte é a vez de Viana ser conquistada. Receosos de terem a mesma sorte, primeiro entregam-se-lhe Vila Nova de Cerveira e Caminha, depois Monção.

Os alcaides destas guarnições tinham agora uma justificação para poderem transferir, com menores receios de quebra de fidelidade, as menagens dos seus castelos, visto que o faziam não ao fronteiro do Regedor, eleito revolucionariamente, mas ao condestável de um rei eleito em Cortes Gerais pelos representantes do clero, nobreza, povo e legistas.

Por sua vez, o rei português, a fim de realizar a missão que lhe cabia, também toma a direcção do norte. Sai de Coimbra e vai à cidade do Porto, onde é recebido festivamente, mas assuntos urgentes impediam-no de gozar, tranquilamente, da boa hospitalidade que os portuenses lhe prodigalizavam. Planos, anteriormente delineados, solicitavam a sua presença em lugares mais distantes. As acções consertadas com o condestável necessitavam de ser executadas com premência.

Como escreveu Salvador Dias Arnaut:

«Nun"Álvares como que preparou o terreno para o rei. Caminhou ao longo da costa, primeiro; ao longo da fronteira da Galiza, depois - e por essa extensa faixa parece que todos os lugares, com a sua passagem, ficaram seguindo a causa portuguesa, excepto Valença e Melgaço, que aliás ele não atacou. A sua acção ergueu inevitàvelmente o espírito dos bons portugueses da província. A D. João I caberia agora actuar numa linha mais para o interior: Guimarães - Braga - Ponte de Lima -; mas actuar em terreno bem preparado para o receber.

Desta sorte, ao cabo de menos de dois meses quase toda a província de Entre-Douro-e-Minho tinha voz por Portugal» (Salvador Dias Arnaut, A Batalha de Trancoso, pp. 185-186).

Para que esta realização se objectivasse, D. João I de Portugal, depois de acertar com o vimaranense Afonso Lourenço de Carvalho os preparativos de ataque a Guimarães, com a cooperação deste e do seu cunhado Paio Rodrigues conquista de surpresa aquela vila.

Encorajados com estes sucessos, também os bracarenses se libertam e expulsam os partidários de Castela para o interior do castelo.

Com a ajuda enviada pelo rei, com a da vila de Guimarães e a chegada de Nuno Álvares Pereira, depressam conquistam o castelo.

O alcaide do castelo de Guimarães, Aires Gomes de Silva, incapaz de resistir ao cerco e impossibilitado de contar com reforços castelhanos, rende-se ao rei português. Depois, segue-se-lhe Ponte de Lima, onde foi preciosa a ajuda dos irmãos Estêvão Rodrigues e Lourenço Rodrigues.

Era indubitável que o sucesso tinha acompanhado esta ofensiva portuguesa, levada a cabo contra o seu território em posse do inimigo.

Se as vantagens alcançadas denotavam que a ocasião era propícia para exercer uma maior pressão sobre o adversário, a fim de alcançar novos e rápidos êxitos, a prudência aconselhava uma contenção da acção, em função da atitude do rei vizinho. Nesta linha de orientação, são as informações vindas do exterior que fazem travar este início do arranque da ofensiva portuguesa, desencadeada em busca da recuperação da parte do seu território em posse do inimigo.

Que informações serão essas? Portugal estará em perigo?

Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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