XIII - A conquista e a reconquista do poder
Consumada a viragem política em Lisboa com eleição de D. João, Mestre de Avis, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, os familiares e partidários da rainha, receosos de sofrerem represálias populares, iniciam a fuga da capital, tomando a direcção de Alenquer ou encaminhando-se para outros lugares, tentando transportar os haveres ou deixando-os em casa dos amigos.
Enquanto Lisboa vivia em permanente alvoroço, chegam os embaixadores enviados a Alenquer com resposta e cartas da rainha. O Mestre, parecendo revelar compromisso definitivo na aceitação do encabeçamento do processo revolucionário, rasga aqueles documentos, sem os ler, enchendo de alegria e entusiasmando os acompanhantes.
Naquela intrincada conjuntura político-social, onde as decisões tinham de ser tomadas com rapidez, o Mestre exercia o poder não só superintendendo o Governo, de forma directa ou por interpostas pessoas, como também reunindo em circunstâncias muito especiais o seu Conselho Privado - por ele instituído para ultrapassar os fortes constrangimentos criados pelos mesteirais na governação -, onde eram apenas ouvidos os conselheiros por si escolhidos conforme o tipo do conselho a receber.
Nos primeiros tempos, seria particularmente relevante a opinião desses conselheiros privados, onde também poderiam estar representados os membros do Governo. Assim, se os nobres se encontravam ausentes do Governo, não deixavam de influenciar o processo revolucionário, intervindo no seu Conselho Privado, contudo, por imposição dos mesteirais, dele haviam sido excluídos os da governação fernandina.
Como tem acontecido nas revoluções por esse mundo fora, também em Portugal, à medida que os amedrontados seguidores da rainha fugiam de Lisboa, os seus cargos eram transferidos para os apoiantes do Mestre, as casas ocupadas e os bens confiscados.
O Mestre, pressionado pelos partidários, não sabendo como satisfazer tantos pedidos, teria sido aconselhado por Álvaro Pais, segundo o cronista, a dar aquilo que não era seu, prometer o que não tinha e perdoar a quem não tinha errado contra si, aconselhamento esse que, a nosso ver, o cronista deve ter metido na boca de Álvaro Pais por haver constatado ter isso acontecido ao analisar e interpretar os documentos.
Os livros de chancelaria joanina confirmam a utilização desse oportuno expediente, ainda hoje praticado pelos governantes. O regente faz imensas doações aos seus simpatizantes, retirando-as aos partidários da rainha e, para evitar o embaraço das duplicações causadas pela desorganização dos órgãos administrativos, própria de mudanças repentinas numa situação revolucionária, no final de cada carta dizia: a doação é feita se ainda não foi dada a outrem por sua carta, antes desta. Posteriormente, quando se sentiu mais firme no poder, passou a escrever: a doação é feita mesmo que já tenha sido dada a outrem antes desta.
Para aqueles que, em nome da moralidade, ficaram surpreendidos e chocados com ucranianos e russos por terem transformado presidiários em heróis da guerra, informo que também o Mestre de Avis perdoou aos assassinos e malfeitores pelos crimes praticados antes do dia 6 de Dezembro de 1383, desde que não fossem aleive ou traição, impondo como condição a obrigação de virem a Lisboa, até certa data, e o servirem à sua custa, enquanto durasse a guerra.
Depressa, os ecos da revolução, desencadeada em Lisboa, percorrem o país. O descontentamento acumulado, de ano para ano, tornando-se mais notório após a morte do rei D. Fernando, criara em Portugal uma atitude expectante. As novidades, vindas da capital, por parecerem credíveis, passam a ser objecto de reflexão por parte das populações locais.
As reacções então exteriorizadas revelavam-se de diversa índole. Exultavam aqueles que compartilhavam com a Oposição a ideia de que era urgente pôr termo à corrente que lançava o país nos braços de Castela. Enfureciam-se outros, por acharem que a atitude lisboeta representava uma traição e, por isso, apoiavam as decisões do poder instituído, considerando a revolução uma rebelião que tinha de ser esmagada com máxima rapidez. Os indecisos e hesitantes achavam que a melhor solução era deixar passar o tempo, actuar de acordo com o rumo dos acontecimentos e optar por uma decisão mais favorável aos seus interesses, tal como fez, entre muitos, Gonçalo Vasques Coutinho, alcaide de Trancoso, de Lamego e de outros lugares, a conselho de sua mãe Beatriz Gonçalves.
Os indiferentes, a quem tanto fazia que a coroa portuguesa se mantivesse independente ou fundida com a castelhana, penderiam pelo lado mais forte, ou seja, da rainha D. Leonor.
Nessa fase do processo, um primeiro confronto se desenha entre as forças mais diferenciadas da sociedade na sua presença pública. Nesse domínio, as chefias das estruturas militares, designadamente os alcaides e as suas responsabilizações, tomam um papel relevante.
A rainha D. Leonor, embora tivesse sido forçada a abandonar a capital, considerava a importância das alcaidarias do país, que cobriam as inúmeras defesas, os castelos e as suas guarnições, para concretizar os seus desejos de reconquistar o poder.
O alcaide do castelo de Lisboa, conde D. João Afonso Telo, era seu irmão e consigo partira para Alenquer. Na outra margem do Tejo, Almada também era de sua confiança. Henrique Manuel de Vilhena, conde de Seia, entusiasta partidário da fusão das duas coroas, tinha à sua conta o castelo de Sintra. Quando fugira de Lisboa havia sido recebida por Vasco Peres de Camões, alcaide de Alenquer. Gonçalo Vasques de Azevedo, alcaide do castelo de Santarém, era também seu apoiante. Em Coimbra, Gonçalo Mendes de Vasconcelos, seu tio, e o conde D. Gonçalo, seu irmão, asseguravam-lhe a fidelidade do castelo e da cidade.
Os acontecimentos de Lisboa ainda não tinham tido resposta em Évora e Porto, razão pela qual os castelos e as cidades continuavam a ser-lhe fiéis. Os castelos e guarnições do norte serão durante muito tempo a sua reserva militar mais segura, mas também, paradoxalmente, a mais ambígua.
É natural que ela planeasse dominar a capital, logo que os ânimos serenassem, como esperava, a partir do controlo não só do castelo de Lisboa como de todos os castelos em redor. No seu plano para o domínio da capital, inquietava-a a situação no Alentejo. Para ela, o perigo residia nos castelos do mestrado de Avis e na negativa influência que poderiam exercer na sua vizinhança, caso apoiassem D. João, Mestre de Avis.
Todavia, a rainha sabia que, dada a urgência das acções a desenvolver, embora pudesse vir a ser senhora da situação militar, não podia contar com as forças apoiantes uma vez que não eram facilmente mobilizáveis e a onda insurreccional, desencadeada em Lisboa, criara dúvidas e indecisões impedindo uma acção concertada. Daí que tivesse de enviar cartas aos diversos alcaides do país, assim como aos homens-bons das vilas e cidades, particularmente aos alentejanos e algarvios, queixando-se dos acontecimentos ocorridos em Lisboa, solicitando que reiterassem a manutenção da fidelidade e garantissem o cumprimento das ordens recebidas.
Porém, o plano de rainha irá sofrer fortes contrariedades, terá de se confrontar, no terreno, com os do Mestre, com as suas mensagens e o sucesso das primeiras acções desenvolvidas.
A vitória da revolução, encabeçada por Lisboa, para se consolidar necessitava do apoio do resto do país. O poder legítimo, para anular a derrota sofrida em Lisboa, precisava de isolar os insurrectos.
O primeiro grande embate, entre as duas forças em confrontação, passava por captar adesões às respectivas causas.
A reacção global do país, salvaguardando todos os riscos que comportam as generalizações, seria comparável à posição inicial de Lisboa. Os que tinham bens e haveres a defender hesitavam ou optavam pela rainha; o povo miúdo, que nada tinha a perder, arriscava pelo Mestre.
A adesão efectiva pela rainha ou pelo Mestre dependia das forças em jogo. Onde a arraia-miúda conseguia impor a sua vontade aumentava o apoio do Mestre, onde vencia o medo do monarca castelhano ganhava a rainha.
A opção era muito difícil, porque pela primeira vez, na História de Portugal, a população tinha de decidir qual o partido a seguir. A experiência passada não existia, logo nada ensinava, ou melhor, permitia antever com grande probabilidade o insucesso da causa lisboeta.
Sentindo-se pouco segura em Alenquer, por causa dos ventos adversos que sopravam em Lisboa, a rainha D. Leonor achou melhor mudar-se para Santarém, a mais forte vila das proximidades da capital.
Recordando-se dos levantamentos aí ocorridos contra a sua filha no reinado fernandino, através da intercessão de Gonçalo Vasques de Azevedo, alcaide de Santarém, consegue ser convidada e recebida pelas pessoas mais importantes da vila, assim como pelos judeus.
Não eram só as cidades e vilas que tinham de optar por um dos contendores, também as famílias necessitavam de decidir se apoiavam o Mestre ou a rainha. O caso mais paradigmático da divisão foi o da família de D. Álvaro Gonçalves Pereira, Prior da Ordem de Hospital, influente privado dos reis D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando, que teve 32 ou 33 filhos.
Estando em Pontével com o seu meio-irmão Pedro Álvares Pereira, Prior de Hospital após falecimento de D. Álvaro Gonçalves Pereira, Nuno Álvares Pereira, que aos 13 anos havia sido escudeiro da rainha D. Leonor Teles e se distinguira pela sua ousadia no reinado fernandino, soube que a rainha enviara Gonçalo Tenreiro com a missão de solicitar a Pedro Álvares Pereira que fosse em seu serviço.
O Prior, em cumprimento dos desejos da rainha e contra a vontade de Nuno Álvares, acompanhado deste dirigiu-se para Santarém, onde os dois tomaram conhecimento dos mais recentes acontecimentos de Lisboa.
Entusiasmado com as notícias, Nuno Álvares convida-o a juntar-se ao Mestre para ajudá-lo a defender Portugal contra o rei de Castela, apresentando como argumento de peso o facto de Portugal ter sido sempre isento sobre si, ou seja, independente, mas Pedro Álvares Pereira manteve-se firme e inflexível na sua decisão, alegando incapacidade portuguesa de defesa perante o poderio castelhano, e afirmando também que a maioria dos portugueses optaria pelo monarca vizinho por ter jurado fidelidade conforme obrigara o Tratado de Salvaterra de Magos.
Que seguimento terá o processo revolucionário e qual será o comportamento dos filhos do falecido D. Álvaro Gonçalves Pereira?
Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.