No tumulto eleitoral ressurgiu a questão cigana. Descontando a demagogia partidária, confirmou-se que este é infelizmente um tema em que a discussão gera mais calor do que luz. Tratado com irritação por todas as partes, no final as posições ficam extremadas, irredutíveis, piores. Nem sequer é prudente escrever um artigo sobre a matéria, mas ela deve ser analisada..Nas controvérsias sobre discriminação fala-se muito, mas o resultado habitual é que as pessoas se magoam, os agravos azedam, a situação deteriora-se. É importante dizer que isto resulta, menos da maldade dos intervenientes do que da estrutura intrínseca da dificuldade. Esta normalmente inclui uma dinâmica bipartida, composta por duas faces importantes, mas opostas. Cada uma das partes, intensamente consciente do lado que considera, despreza o outro, que os adversários admitem de forma tão intensa e exclusiva como eles. Por isso, quando mais falam mais se afastam..Xenófobo é todo aquele que despreze outra pessoa apenas por ser diferente. Este preconceito é inaceitável, violando a igualdade natural da humanidade, podendo tornar-se criminoso nos actos consequentes. Se este extremo é oficialmente repudiado numa sociedade livre e democrática, tendemos a descurar o erro oposto, também nocivo. Esta posição, de pessoas a que podemos chamar daltónicas, é a de quem leva o seu amor à igualdade ao ponto de negar a existência de diferenças. A primeira atitude recusa dignidade a certas pessoas, a segunda nega dignidade a certas opiniões. Não admira que aumente a animosidade. A posição razoável é admitir a disparidade, compreender que isso gera dificuldades concretas na vida das pessoas e, apesar disso, manter o respeito pela dignidade dos envolvidos. Somos iguais em direitos, diferentes na forma, temos de ser pacientes na convivência. No caso dos ciganos esta atitude é ainda mais necessária, devido ao tipo de diferença envolvido..Existem três grandes formas de discriminação. A primeira, chamada racismo, resulta de atributos pessoais em cidadãos que, no resto, são iguais aos outros. Um africano, judeu ou chinês, actuando exactamente como os vizinhos, pode ser marginalizado só por ser quem é. Este é o caso mais aberto e descarado de xenofobia, baseado exclusivamente em preconceitos rácicos. A segunda situação de discriminação resulta, não da natureza, mas de comportamentos, orientações ou convicções. Muçulmanos, cristãos, comunistas ou homossexuais, vivendo normalmente com os outros, podem ver-se atacados quando a sua identidade é revelada. Este caso, por vezes confundido com o anterior, é muito diferente. Aliás, pode dizer-se que aqui ninguém é daltónico. Muitos, ao repudiarem abertamente a segregação de árabes ou maçons, são intensamente xenófobos contra racistas, nazis ou banqueiros. A liberdade de opinião permite o repúdio por atitudes alheias, que só se transforma em xenofobia se violar o respeito por quem as tem..A situação dos ciganos é diferente destas duas, devido à manutenção de uma comunidade distinta dentro da sociedade. Existem muitas pessoas de etnia cigana integradas na cidade comum. Esses, se forem discriminados, sofrem do primeiro tipo de xenofobia. Mas a questão cigana aplica-se aos que mantêm a sua tradição nómada, vivendo, em muitos aspectos, à margem do resto da colectividade, seguindo regras próprias. Esta circunstância gera confrontos concretos, que não devem ser escamoteados nem englobados nos dois casos anteriores..Os ciganos são habitualmente acusados de violar a lei e desrespeitar a autoridade, mas isso é mal-entendido. Eles são tão ou mais cumpridores que os outros; têm é leis e autoridades diferentes. Esta situação, hoje rara, entende-se melhor na história antiga: para um bárbaro, roubar na tribo é ser ladrão, mas roubar um romano é legítima pilhagem. As épocas e locais em que são comuns estes confrontos entre povos mostram como os terríveis embates nascem de meros equívocos e contradições. As reservas índias são o testemunho vivo de um genocídio destes, que ensanguentou os EUA..Aqueles que não gostam de ciganos só pelo facto de o serem, são xenófobos e têm uma posição inaceitável. Bastaria conversar com um colega dessa etnia para compreender o preconceito. Mas isso não elimina a existência de um problema cigano, que deve ser abordado de forma séria, respeitosa, mas responsável. Quem não vive perto dessas comunidades, quem não sabe o que é ter filhos regularmente agredidos e roubados, quem nunca viu o comércio descarado de droga ou crimes afins, não tem autoridade para acusar de xenofobia..Existe um racismo contra ciganos. Mas existe também um problema de integração de alguns ciganos nas leis e hábitos portugueses. Como sabemos das negociações diplomáticas, a assimilação entre povos distintos só avança com diálogo paciente e construtivo, sempre muito árduo e delicado. Por isso é tão mau que as discussões mediáticas gerem mais calor do que luz.