Depois de dois filmes que representaram notórios fracassos de crítica e de público, Xavier Dolan, em tempos considerado a grande promessa do cinema francófono, voltou-se para o pequeno ecrã. A mudança de registo foi assumida pelo próprio realizador, que em entrevista à Première no início deste ano deixava evidente a sua desilusão com os resultados das ditas obras - A Minha Vida com John F. Donovan (2018) e Matthias & Maxime -, não tendo mais vontade de "passar dois anos da sua vida a trabalhar num filme que as pessoas não vão ver". O cinema, como disse na altura, já não lhe interessava, ao contrário da televisão: "Acho que tenho mais referências televisivas do que cinematográficas. Diria quase que a escrita de uma série é mais natural para mim. Foi muito simples e agradável desenvolver um argumento ao longo do tempo. Se for o caso, sou menos um realizador de filmes do que um showrunner.".Perante A Noite em que Logan Despertou, agora em estreia na plataforma Filmin, apetece dizer que Dolan avaliou bem. Talvez o pequeno ecrã seja mesmo a praia deste jovem apegado à música pop e à psicologia intensa. Para quem cedo se cansou da histeria estilística do menino-prodígio do Québec, esta série, apesar de manter os típicos laivos de videoclip, vem apetrechada de uma linguagem de thriller que torna os floreados dramáticos de Dolan menos importantes e distrativos do que a (re)construção da verdade humana que está no centro da narrativa. Sentimos, porventura pela primeira vez, que há uma respiração justa no seu retrato familiar de cinco episódios..Adaptada da peça homónima de Michel Marc Bouchard (dramaturgo cujo trabalho já tinha inspirado Dolan no filme Tom na Quinta), a série centra-se numa família ferida por um segredo do passado que desenhou silêncios, distâncias e traumas entre irmãos até ao dia da morte da mãe (a habitué Anne Dorval), quando esses silêncios, distâncias e traumas não têm outro remédio senão ser enfrentados. Três rapazes crescidos, e a mulher de um deles, reúnem-se à volta do leito da matriarca moribunda, cada um com o seu infortúnio íntimo espelhado no rosto, surpreendendo-se com a chegada de uma irmã há décadas ausente das suas vidas, que vem "apenas" embalsamar a mãe, tal como ficou escrito no testamento. Mireille (Julie LeBreton), tanatologista, surge como uma figura quase arrepiante no cenário fúnebre, mostrando-se bem mais complexa à medida que os flashbacks vão dando conta de momentos precisos da sua adolescência. Antes dela, os outros irmãos ficam mais ou menos esboçados aos olhos do espetador: Denis (Éric Bruneau), um tipo amável, divorciado, com uma disfarçada desordem interior que se reflete no seu apartamento; Elliot (o próprio Xavier Dolan), o mais novo, que vem da reabilitação, mas ainda não está pronto para encarar o mundo sem drogas; e Julien (Patrick Hivon), o mais velho, casado e infiel, que parece o mais atormentado de todos, por trás de sorrisos mecânicos e com uma postura de quem se sente perseguido. Será da sua imaginação?.Ao contrário da peça teatral, que se desenrola numa sala de embalsamamento, a série de Dolan explora a disfunção familiar a partir de uma montagem de cenas do passado (1991) e do presente (2019) que funcionam como um puzzle em que o encaixe das peças vai sendo sugerido mas nunca inteiramente assegurado até ao final, quando a verdade suplanta as imagens confusas da(s) memória(s) e revela a beleza da construção narrativa. De facto, o que surpreende em A Noite em que Logan Despertou é o modo como o mosaico do tempo - que não contorna os efeitos de estilo do realizador canadiano - retira das variações musicais uma força que, regra geral, no cinema de Dolan corresponderia ao exagero dramático. Não é que as personagens a "sangrar por dentro" não se manifestem, mas há aqui uma estrutura de suspense, uma psicologia gerida com pinças, que não depende inteiramente de exibições descompensadas..Seja como for, estamos sempre a falar de gente vulnerável ao máximo, apanhada pelo luto, com a alma feita em cacos, que ouve de outras pessoas frases desdenhosas como "tens merdas familiares por resolver", enquanto entra numa espiral de sexo, drogas e violência, convivendo com fantasmas colados à pele ou fechados em caixas de lata. Afinal, que se passou na noite de 1991 em que "Logan despertou"? Quem é Logan? À segunda pergunta nem vale a pena responder (é entrar demasiado na história), mas a primeira é aquela para a qual trabalham todas as notas de terror e comoção que tornam os cinco episódios da série empolgantes no seu mistério de vislumbre trágico - nesta primeira colaboração com o compositor Hans Zimmer, é preciso referir que também a banda sonora acrescenta algo ao universo mental das personagens. Não se trata, porém, de um enigma que se resolve com a descoberta dos factos. A Noite em que Logan Despertou impacta num plano mais profundo, como se escavasse a dor de uma família para estudar os seus estratos. Percebe-se que houve entrega.."Com esta série, dei tudo de mim, na paixão e na intensidade. Secou-me um pouco", confessou Xavier Dolan à Première. Por enquanto, o cinema continua fora da agenda: "Preciso de descobrir coisas novas. E também de viver uma intimidade com os meus amigos e a minha família, sem ter de calcular o que vou vestir numa estreia, o que vou dizer numa entrevista ou como me vou vestir para uma capa de revista... Não me apetece mais isso. Não me importo mais.".Até à data, A Noite em que Logan Despertou é mesmo o último projeto de um jovem cineasta que cresceu demasiado rápido e realizou intensamente..dnot@dn.pt