Xangai
Muitos são os filmes que duram tempo a mais para aquilo que têm para contar. A inversa raramente se verifica um filme com pouco tempo para contar tudo o que precisava e da maneira que queria. Em Veneza, manifestou-se um desses raros fenómenos, na pessoa de Everlasting Regret, de Stanley Kwan (competição), nome de primeiro plano do cinema de Hong Kong, e baseado num dos romances mais vendidos e mais influentes na China na década de 90. Ou ano tratasse da história colectiva deste país nas últimas décadas.
Estamos em 1947. Duas adolescentes visitam um estúdio de cinema de Xangai. Um fotógrafo de "estrelas", impressionado com a beleza de uma delas, pede autorização para lhe tirar o retrato, expô-lo na vitrina do seu estúdio e mandá-lo para algumas revistas de cinema. Essa fotografia vai decidir o destino da jovem Qiyao, desde a hora em que se torna Miss Xangai até ao momento da sua morte, mais de 30 anos depois.
Everlasting Regret é a história das vicissitudes de Qiyao e de um pequeno grupo de amigos através dos anos da luta entre nacionalistas e comunistas, da vigência do comunismo, das fugas para Hong Kong, Taiwan e para os EUA, e da abertura ao Ocidente, espelhando a história de Xangai nesse mesmo espaço de tempo. Só que, em vez de rodar um filme de fôlego épico, horizontes rasgados e emoções exacerbadas, Stanley Kwan preferiu manter tudo numa escala íntima, adoptar um ponto de vista "humano", mostrar as mudanças na cidade através das alterações na vida dos protagonistas, ser sintético e elíptico em vez de grandiloquente e excessivo, contrastar passado e presente através de pequenos detalhes (um prato de fruta em cima de uma mesa basta para sinalizar que a penúria do comunismo se atenuou) e alegrias e sobressaltos pessoais, ao invés de se atarefar em recriações pormenorizadas e agitadas de acontecimentos colectivos.
Produzido por Jackie Chan e interpretado pela estrela pop de Hong Kong Sammi Cheng, Everlasting Regret é um exercício de nostalgia contido, um melodrama reservado e um hino sussurrado à cidade de Xangai. No final das duas horas do filme, sentimos que Everlasting Regret seria ainda melhor se tivesse durado pelo menos mais sessenta minutos. E que, no fim, de certeza, continuaria a não ter nem um bocadinho de palha.
Palha é o que não falta a La Bestia Nel Cuore, de Cristina Comencini (filha do grande Luigi), segundo filme italiano da competição. A realizadora e escritora adapta à tela o seu novo romance, sobre uma dobradora de filmes (Giovanna Mezzogiorno) que vive com o namorado actor, começa a ter pesadelos sobre a sua infância e descobre que tem um segredo negro e indizível na família. Eis uma fita que dura duas horas, mas que, bem podada de enredos secundários, de verbos de encher visuais e de óbvios reiterados, podia ser reduzida aos canónicos 90 minutos. Algumas mulheres falam de mais, Cristina Comencini é daquelas que filmam em demasia.
Embora seja superior ao primeiro título transalpino da Selecção Oficial, I Giorni Dell'Abbandono, de Roberto Faenza (ver caixa), La Bestia Nel Cuore fica apenas como um exemplo correcto de "filme de indústria", mas coloca a principal intérprete na (até agora) curta lista das candidatas à Taça Volpi de Interpretação Feminina.
RúSSIA. Para não fugir à regra, também Gaspartum, do russo Alexey Guerman Jr., se prolonga por duas horas, e tal como o filme de Stanley Kwan, põe em cena grandes acontecimentos históricos vistos pela janela da porta de casa. Estamos em 1914, em Sampetersburgo, e o arquiduque Franz Ferdi- nand acaba de ser assassinado em Sarajevo. Nada que excite um quarteto de adolescentes, dois deles irmãos, muito mais interessados em jogar futebol e em juntar dinheiro para comprar um terreno e lá construir um campo da bola, do que nas grandes comoções da História. Para as personagens de Gaspartum, a I Guerra Mundial e a revolução bolchevique só têm importância na medida em que lhes perturbam as vidas, mexem com as existências de familiares e amigos e impedem de jogar futebol.
Alexey Guerman Jr. rodou Gaspartum com a cor sépia das velhas fotografias, e bem que podia também ter dado um talho aqui e ali, que o filme não tinha ficado pior por isso.
Numa das sequências, onde uma equipa amadora inglesa defronta outra russa, pode ver-se, a jogar a guarda-redes dos britânicos, Serguei Ovchinikov, ex-Benfica e ex-FC Porto.