Woody Allen: "Precisava de dois ou três meses em Lisboa para ter a ideia de um filme"

O realizador americano deu um ar da sua graça na Cinemateca, e muitos foram os que o quiseram ver - de certeza mais do que os que conseguiram. Um encontro em Lisboa no seu querido mês de setembro. Um pequeno grande acontecimento para guardar na memória.
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Daqui a uma semana começa o outono, a estação preferida de Woody Allen. "É a altura do ano mais bela", admite na autobiografia A Propósito de Nada, descrevendo assim a mudança de cor das folhas no fim do verão em Nova Iorque, vista da janela da sua penthouse, com a mulher Soon-Yi: "Era, simultaneamente, espantoso e calmante. Espantoso porque os vermelhos e os amarelos na natureza suplantavam quaisquer tubos de pigmentação, por muito inspiradoramente que os pintores os combinassem; calmante porque as folhas em breve morriam e caíam, ao típico modo tchekhoviano, e se tinha a noção de que um dia também nós secaríamos e cairíamos." Por sinal, Tchékhov inspirou o seu filme com nome de mês, em que Dianne Wiest diz a Mia Farrow, à despedida, "Setembro vai manter-te ocupada", enquanto se ouve o tema de jazz My Ideal, de Art Tatum e Ben Webster, a tocar no gira-discos. Que época do ano melhor para encontrar Woody Allen?

Tirando o facto de o clima já não ser o que era, o outono aproxima-se e o realizador americano esteve em Lisboa, ontem, cumprindo o desígnio de se "manter ocupado", tal como a personagem de Setembro. Veio a Portugal na qualidade de músico de jazz, pouco depois de ter estado em Veneza a apresentar o novo filme, o outoniço Golpe de Sorte (que se estreia a 5 de outubro), e fez uma paragem na Cinemateca para dois dedos de conversa com Ricardo Araújo Pereira, diante de uma plateia ansiosa, a propósito do seu último livro, Gravidade Zero (onde também fala das "folhas quebradiças encarnadas e amarelas do outono"). Um evento no âmbito da edição 2023 do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos, que decorrerá em outubro.

A sessão de conversa, organizada entre a Cinemateca, o Grupo Almedina (que detém as Edições 70, responsável pela edição portuguesa do livro) e o Folio, estava à pinha, como seria de esperar, e houve muita gente que não conseguiu garantir o bilhete - a fila descia a rua Barata Salgueiro e dava a volta na esquina para a Avenida da Liberdade... Quanto a Woody Allen, que entrou na sala com um atraso de meia hora, entre aplausos efusivos e uma onda de calor humano, cumpriu aquilo que fora transmitido previamente: o assunto central seria o seu livro, uma coletânea de pequenas histórias inspiradas por notícias de jornal com potencial cómico. De resto, o cineasta mundialmente conhecido considera-se sobretudo um escritor.

Não se falou de questões existenciais nem das folhas das árvores no outono (bem, houve uma referência breve ao facto de "nada sabermos sobre nada"), porque Allen quis entrar pelo peso pluma da sua escrita. "Escrevi [estas histórias] apenas por diversão. Não há aqui nada de profundo ou sério - escrevi-as apenas para vosso amusement. É por isso que o livro se chama Gravidade Zero: não há nada que tenha gravidade ou peso", começou por dizer aquele que se considera um grande sortudo, e que percebeu cedo que "nunca teria de trabalhar para viver", já que "se tens sentido de humor, podes ganhar a vida fazendo as pessoas rir".

Declarações de um conversador ameno, com uma presença quase angelical, que o DN testemunhou ao vivo e a cores, apesar de haver outra sala ao lado - a Luís de Pina - destinada à imprensa, onde os jornalistas assistiram ao encontro em direto, via streaming, dado o limite do número de lugares na sala M. Félix Ribeiro. Quem esteve no mesmo espaço que a lenda nova-iorquina sentiu, portanto, o intimismo do momento, a graça e aquela forma de responder às perguntas como se não tivesse nenhuma revelação a fazer, como se o mundo se apresentasse em ordem, apesar do vislumbre do fim. Já não é um Woody Allen neurótico, mas ainda se reconhece nesta aparente tranquilidade o jovem comediante que escreveu Para Acabar de Vez com a Cultura e fez do cinema uma morada confortável, plena de desconfortos filosóficos.

Acompanhado de uma Olivetti, qual amuleto exposto numa mesinha de centro para compor o cenário do Woody Allen-escritor, recuou também às origens, à memória do tempo dos clubes noturnos onde fez stand-up comedy e aos bastidores onde conheceu "comediantes geniais" que o trataram com enorme simpatia (dado que era só um jovem de 20 anos), sublinhando que gostou enquanto durou, mas não quereria ter essa vida agora. A sua grande influência? "O meu estilo é um derivado do estilo de S. J. Perelman", humorista que escreveu para a New Yorker e para os irmãos Marx.

Saindo um pouco da arena da comédia propriamente dita, Ricardo Araújo Pereira perguntou-lhe também se, à semelhança de Terry Gilliam, estava farto dos filmes da Marvel. Resposta: "Estou virtualmente farto..." Ao que a sala desatou a rir a bom rir, antes de Allen acrescentar: "Nunca vi um filme da Marvel. Nunca vi, mas sou contra". Admitiu o homem que não se vê a si próprio como uma figura massivamente popular. "Tenho o meu público fiel e limitado". Um autor que se identifica muito mais com a máquina de escrever e que faz questão de deixar claro que sempre foi melhor a fazer coisas quando está sozinho num quarto, desde as brincadeiras de prestidigitação, em criança, à escrita e à prática do clarinete.

Já perto do final da conversa, e não sendo possível estender as perguntas aos leitores, uma pessoa na audiência conseguiu fazer-se ouvir: "Pergunte-lhe quando é que ele faz um filme em Portugal!" Pergunta obrigatória, claro... Reação? Sem descartar a hipótese, o realizador - que elogiou particularmente a cidade do Porto - disse apenas que é preciso haver uma ideia específica para se fazer um filme em qualquer cidade. "Precisava de passar dois ou três meses em Lisboa para ter a ideia de um filme. Se me arranjarem uma boa história com sardinhas...", brincou.

E "sardinhas" foi mesmo a última palavra dita nesta sessão especial, especialíssima, que prosseguiu com a exibição do seu filme emblemático, Manhattan (1979), que, como contou, foi o seu golpe de sorte: "Pedi para o estúdio não estrear o Manhattan porque não gostei do filme, mas as pessoas gostaram. O que fazer?"

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