O mundo não está lá em muito bom estado quando um filme de Woody Allen tem árias de óperas de Donizetti, Verdi e Rossini na banda sonora, em vez daquele velho bom jazz que o realizador venera. O mundo está mesmo perigoso quando, num filme de Woody Allen, e em vez de fazer rir os espectadores, o protagonista mata a tiros de caçadeira a amante grávida, uma velhota vizinha dela e simula um assalto para baralhar a polícia. Mas é o que acontece em Match Point, o novo Woody Allen, visto ontem fora de competição e um dos seus filmes mais sombrios desde há muito tempo..Rodado em Inglaterra, nomeadamente em Londres, e com um elenco quase todo britânico, exceptuando Scarlett Johansson, Match Point vai buscar imagens do ténis, a ideia da importância do acaso e da sorte na vida de uma pessoa, alguma inspiração a Crime e Castigo, de Dostoievski, e o assunto de outro filme do realizador, Crimes e Escapadelas (1989) - a possibilidade de se viver com a culpa de um assassínio na consciência. Só que neste último a personagem de Martin Landau mandava matar, enquanto a de Match Point, interpretada por Jonathan Rhys-Meyers a recordar o jovem Malcom McDowell, mata com as próprias mãos; e o acto fica a pesar de forma diferente sobre cada um dos homens..Match Point é a história de Chris (Rhys-Meyers), um jovem professor de ténis sem cheta, que vai dar aulas para Londres. Fica amigo de um aluno endinheirado, casa com a irmã deste, recebe de bandeja um emprego de ouro numa das firmas do sogro e toma por amante a ex-namorada americana (Johansson) do cunhado, uma actriz em começo de carreira. O resultado desta história de ascensão social meteórica, e de hesitação entre a rotina conjugal rodeada de conforto e a paixão ardente e carnal vivida na penúria, é uma tragédia inglesa com um tormento moral no centro, e um ressalto inesperado no final - tal como acontece muitas vezes no jogo decisivo de uma partida de ténis..Apesar de, na conferência de imprensa, ter mais uma vez reconhecido a admiração que nutre pela grande literatura russa, Woody Allen negou, tirando um par de citações avulsas, que Match Point tenha sido influenciado por Crime e Castigo, frisando que a literatura "possui uma profundidade que o cinema não consegue atingir" (e justiça lhe seja feita, Woody Allen não tem quaisquer pretensões de a atingir com este filme). O realizador negou também que Match Point tenha parentescos com Uma Tragédia Americana, de Theodore Drei- ser, cujo tema parece também ressoar na história de Chris..Allen deixou Manhattan por Londres para filmar Match Point (em cuja produção a BBC teve uma participação decisiva) porque, disse, lhe é cada vez mais difícil arranjar dinheiro para fazer filmes nos Estados Unidos, onde os investidores querem "intrometer-se em tu-do", até mesmo na escolha do elenco. Filmar na Grã-Bretanha, pelo contrário, é um "prazer", porque se consegue financiamento com facilidade, "ninguém mete o nariz em nada", os actores são todos excelentes, "até os secundários mais anónimos", e o tempo é do seu agrado, sem "calor a mais" como em Nova Iorque. Por isso, Woody Allen planeia rodar o seu próximo filme de novo em Londres, com início no Outono..IRAQUE. O Iraque domina os dois filmes vistos ontem na competição. E são ambos maus. O raquítico Kilometre Zero, realizado por Hiner Saleem, um curdo iraquiano refugiado em França há anos, conta a história de um soldado curdo que decide desertar durante a guerra Iraque-Irão. Kilometre Zero é co- -produzido pela França, que depois de passar anos a fornecer material de guerra ao regime de Saddam Hussein, paga agora os filmes que denunciam as suas barbaridades. .Quanto a Bashing, do japonês Masahiro Kobayashi, baseado em factos reais, aborda o tema da recepção hostil que os reféns japoneses no Iraque tiveram no seu país após terem sido libertados, através do dia-a-dia de um deles, uma rapariga que se vê sujeita desde a telefonemas anónimos ameaçadores até agressões na rua. Mas em vez de nos explicar o porquê deste comportamento agressivo para com os ex-reféns, Kobayashi prefere passar hora e meia a mendigar a piedade do espectador para a protagonista. Bashing é uma estopada e eu nunca dei para este peditório.