"Winnie não é bem-vista como líder militar por ser mulher"

Realizadora francesa premiada, Pascale Lamche vive hoje em dia em Londres, mas durante muito tempo a sua casa foi a África do Sul. Peter Makurube, artista oriundo do Soweto e seu companheiro de longa data, morreu em 2015, enquanto rodavam o documentário <em>Winnie</em>, que veio apresentar no Doclisboa.
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O filme, premiado no Festival Sundance, oferece uma perspetiva diferente da segunda das três mulheres de Nelson Mandela, líder da luta contra o apartheid, primeiro presidente negro da África do Sul.

Ganhou o prémio de melhor realizadora no Festival Sundance deste ano com Winnie. Disse que este prémio é uma desforra. Para quem? Para si? Para Winnie? Ou para ambas?
Provavelmente para ambas. Para mim, pessoalmente, porque o meu companheiro, Peter Makurube, que era um sul-africano negro do Soweto morreu enquanto fazíamos o filme, num hospital público em Joanesburgo. Fiquei revoltada. As coisas básicas que poderíamos esperar que existissem no país hoje em dia não existem para muitas pessoas. Ele sempre me disse que o filme que era preciso fazer sobre a África do Sul era o filme sobre Winnie Mandela. E que isso iria revelar muito das raízes do que se passa hoje na África do Sul. O filme é uma crítica ao período de transição para a democracia. Muitos podem considerá-lo uma reabilitação de Winnie. Acho que não. É o trazer novas perguntas. Só percebi que era uma desforra também para Winnie até ela ter visto o filme pela primeira vez.

Considera, de alguma forma, injusta a imagem que há de Winnie no Ocidente?
Sim. Acho. Notei que havia a ideia vaga de que Winnie fora uma mulher terrível, assassina, mas as pessoas mal sabiam porquê. Investiguei, comecei a ligar os pontos, a fazer perguntas diferentes. Este é um filme aberto, que pode contribuir para um debate que existe hoje, sobre o movimento de libertação, sobre se o ANC fez tudo o que prometeu, onde é que o país está agora.

Winnie foi acusada de ordenar mortes e criar o Nelson Mandela Football Club, considerado como uma espécie de milícia. Mas passou também, por outro lado, muitos anos a lutar sozinha, enquanto o marido estava preso em Robben Island. Porque é que as pessoas retêm mais a primeira parte da história do que a segunda?
Este filme é uma versão condensada. Não pude pôr tudo. O Nelson Mandela Football Club não era uma milícia. No Soweto houve muita violência e havia muitos clubes desses para tirar os jovens da rua. Da violência. Para tentar proteger pessoas ameaçadas. O clube de futebol era um disfarce para pessoas que vinham lutar, fazer operações, depois voltavam a sair do país. O que quis fazer com este documentário foi dar espaço para discutir Winnie como líder militar. O que era aceitável para um homem líder militar não era no caso de uma mulher. Isso tem que ver com o facto de ela ser vista como a mãe da Nação e, por isso, não ser bem-vista como líder militar.

Como conseguiu que Winnie aceitasse falar consigo?
A primeira vez que falei com Winnie ela falou de forma distante e disse que a história iria reconhecê-la. Eu disse-lhe que a história não iria fazer isso se ela não falasse. Ela evitou-me. Foi complicado. Senti que não confiava em ninguém. Primeiro aproximei-me da filha, Zindzi, até conseguir, depois de algum tempo, reunir-me com ela, uma noite, já muito tarde. Sentámo-nos à volta da fogueira dela, no jardim, conversámos até às quatro da manhã. No final ela disse, sim, podes encontrar-te com a minha mãe, organizou um jantar, foi extraordinário. Sabia que tinha de entrevistá-la várias vezes para conseguir ir desfiando as várias camadas. Todos nós construímos uma narrativa que é preciso ir desconstruindo. Falámos quatro vezes. A certa altura consegui chegar a ela. Que houvesse emoção por parte dela. Exibi o filme em Joanesburgo. Antes enviei-o a Zindzi e pensei que ela iria vetá-lo. Mas não. Ela e a mãe só o viram na estreia. Houve uma grande ovação no cinema. Pessoas que choraram. No final, o público fez perguntas, percebi que tinham mudado a perspetiva. E Winnie sentiu-se, finalmente, reconhecida. Uma pessoa da família, que jantou com ela, disse-me.

Deixou muito de fora... Perguntou a Winnie sobre Dali Mpofu, o advogado de quem se diz ter sido seu amante? No filme não surge esse assunto...
Acho que sim. Mas, depois na edição, não entrou. Era mais poderoso, no filme, ter a parte em que ela é derrotada e admite que foi traída. Sou realizadora. Não sou jornalista. Muitas decisões têm que ver com a narrativa.

Há livros que falam sobre alegadas amantes de Nelson Mandela. Nesse campo Winnie foi julgada de forma diferente por ser mulher?
Claro. Há um critério duplo. Ela sabia que, na clandestinidade, ele se metia com outras mulheres. A verdade é que, em todo o casamento, não passaram muito tempo juntos, fisicamente. Havia uma coisa em que apartheid e nacionalistas negros estavam de acordo: as mulheres é suposto ficarem em casa, a olhar pelas crianças, serem um apoio. Não é suposto estarem na linha da frente, serem políticas, dizerem o que pensam. Também o ANC, enquanto movimento de libertação, era baseado no comunismo. A ideia de individualismo não era bem-vista. Winnie, que não esperava por ordens para falar, teve de enfrentar um comité central vindo do exterior e uma liderança saída da cadeia.

Winnie inclinava-se mais para a vingança e Mandela mais para a conciliação. Olhando para o que se seguiu e a situação atual da África do Sul, quem tinha mais razão?
Não é uma questão de uma coisa ou de outra. Ambos tinham o mesmo objetivo: libertar a África do Sul e criar uma sociedade melhor para a maioria dos sul-africanos, mas tinham visões diferentes sobre como chegar a isso. A combinação dos dois era o que a África do Sul precisava. O apartheid sabia que a democracia não poderia ser travada. E conseguiram, cuidadosamente, fazer a transição, negociando com os que estavam dispostos a acomodar muito para que as coisas continuassem a funcionar. Sabiam que poderia haver fuga de capitais, por exemplo, então foram tomadas decisões que não tiveram como prioridade a maioria dos sul-africanos, ou seja, os negros. Assim, criou-se uma situação em que a pobreza iria continuar e uma pequena elite iria tornar-se muito rica, através do black empowerment. Hoje temos isso. Há grande disparidade entre ricos e pobres. A situação é séria. Os estudantes protestam por educação gratuita porque sabem que a educação é a única forma de dar poder à população. Os sul-africanos conseguiram o direito de voto, sim, mas pouco mais.

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