We've come a long way: 45 anos da batalha dos sexos, o jogo que mudou o ténis
"O circuito feminino profissional começa com este jogo, a batalha dos sexos", defende Miguel Seabra, comentador de ténis da Eurosport desde 2003. "Um grupo de mulheres independentes criou o circuito WTA [Women Tennis Association]. Ficou conhecido pelo lema 'You've come a long way baby' [Percorreste um longo caminho, querida], que era o slogan dos cigarros que patrocinavam o circuito", diz o ex-editor executivo do extinto Jornal do Ténis, ex-árbitro e campeão universitário como jogador. Há 45 anos, a 20 de setembro de 1973, Billie Jean King punia a fanfarronice de Bobby Riggs no Houston Astrodome (o jogo com maior assistência da história) e, mais importante, "mudou o jogo" e virou a mesa a favor da libertação feminina. Há 30 anos, escreveu a história da luta do ténis feminino, que se transformou em manifesto feminista: We Have Come a Long Way: The Story of Women's Tennis.
"A Billie Jean não vinha de famílias ricas. Era filha de um bombeiro. Quando era miúda, não a deixaram tirar uma fotografia no clube onde jogava porque era uma mulher e estava de calções", lembra Miguel Seabra, press officer de longa data do Estoril Open e ligado à modalidade há quatro décadas (jovem praticante). Explica muito do que viria a ser Billie Jean, a campeã, inquebrantável ativista pelos direitos das mulheres e não só, como diz: "Sejam iguais, está bem?" Hoje, é das mais influentes personalidades mundiais - eleita em 1992 pela Life Magazine entre os cem americanos mais influentes da história. É a única atleta feminina a emprestar o nome a um complexo desportivo, o "Billie Jean King National Tennis Center", coração da modalidade no país, propriedade da federação. Foi a primeira atleta feminina a receber a Medalha da Liberdade, das mãos do então presidente Barack Obama, em 2009.
Uma feminista corajosa. Casou-se em 1965 com Larry King (daí o apelido, o de família é Moffit), mas em 1981 teve de assumir ser bissexual numa sociedade conservadora. Acabaria por se divorciar em 1987 e começou uma longa relação, que ainda hoje dura, com a parceira de pares, Ilana Kloss.
Billie Jean que, no passado dia 9, defendeu Serena Williams e atacou o árbitro português Carlos Ramos por ter tido "critério duplo" ao advertir três vezes Serena na final do US Open, ganho pela japonesa Naomi Osaka.
O que levantou uma enorme e gigantesca onda de prós e contras. Talvez a única grande figura que ainda não se tinha posicionado, Roger Federer defendeu na segunda-feira o árbitro, mas questionou algumas das regras do ténis.
Billie Jean foi profissional entre 1966 e 1983. No Hall of Fame desde 1987, venceu 39 Grand Slam (12 individualmente, 16 em dupla feminina e 11 em dupla mista) e completou a carreira com um impressionante registo de 695 vitórias e 155 derrotas, num total de 129 títulos, 67 ganhos na era Open, que ela própria forjou.
Em 1970, a indignação contra a diferença de valores fixados para os vencedores feminino e masculino (os destes últimos eram, em média, 12 vezes superiores) fê-la romper com o sistema e, liderando as "originais 9" (Billie Jean King, Rosemary Casals, Judy Tegart Dalton, Nancy Richey, Peaches Bartkowicz, Kristy Pigeon, Valerie Ziegenfuss, Julie Heldman e Kerry Melville Reid), arriscou tudo. Com o apoio de uma tabaqueira criou o Virginia Slims Tour.
E ganhou. Em 1973, o US Open tornou-se o primeiro Grand Slam a pagar o mesmo prémio aos vencedores feminino e masculino. Nessa altura, já Billie Jean tinha fundado a WTA (e foi designada a primeira presidente).
Esse é o ano de todas as reviravoltas. A 13 de maio dá-se o "massacre do dia da mãe". Com a recusa de Billie Jean, Bobby Riggs convence Margaret Court para uma primeira batalha dos sexos e humilha-a dentro (2-0, com 6-2 e 6-1) e fora do campo. "O lugar das mulheres, primeiro, é no quarto, depois, na cozinha", dizia. A 20 de setembro engoliu cada palavra, no Houston Astrodome, no jogo com maior assistência da história: 30 470 mil estiveram nas bancadas e uns astronómicos 90 milhões viram pela TV em todo o mundo.
Este jogo deu origem a um filme no ano passado, A Guerra dos Sexos.
Billie Jean King finalmente cedeu aos desafios fanfarrões do "típico macho porco chauvinista" e ex-campeão Bobby Riggs. Esmagou-o em três sets (6-4, 6-3 e 6-3) e percebeu que estava a mudar a história da modalidade. Conseguiu um nivelamento do prize money entre o circuito masculino e o feminino, criado como consequência do resultado desta "batalha dos sexos". O prémio foi entregue pelo campeão mundial de boxe de pesos pesados, George Foreman. Nada mais, nada menos do que cem mil dólares - hoje equivalem em poder de compra a 580 mil dólares, 496,4 mil euros.
"Enquanto ele tomava uns 400 comprimidos por dia e andava na farra, ela treinava 250 smashes por dia porque o Riggs era especialista no balão (lob)", recupera Miguel Seabra. "Houve mesmo bilhetes a cem dólares, esgotou", acrescenta.
Houve muita especulação quanto a Riggs ter feito um milhão e meio de dólares com esse jogo, apostando contra si próprio para pagar dívidas do jogo à máfia.
Aos 55 anos (BJ King completou 30 em novembro), Riggs era o "autoproclamado macho porco chauvinista". "O instinto do Riggs era enganar. E perder de propósito era um gozo maior do que a ignomínia de perder com uma mulher", diz Miguel Seabra, que estudou a fundo e escreveu sobre a batalha dos sexos.
E compõe a personalidade de jogador viciado do ex-campeão Bobby Riggs: "Em 1939, apostou 100 libras em como ganhava singulares, pares e pares misto em Wimbledon, e ganhou; o Evel Knievel [famoso acrobata motociclista] partia-se todo nas motos: apostou com ele que ia de Las Vegas a Twin Falls [795km] de moto vê-lo saltar num espetáculo. Quase morreu pelo caminho, mas ganhou a aposta; apostou com uma das famosas jogadoras campeã da Rocky Mountains [reputada academia] que lhe ganhava um jogo preso por um fio a uma mula, e ganhou; apostou com seis atores da série M*A*S*H que lhes ganhava com um elefante do lado dele do court, e ganhou".
Enquanto Riggs ficou preso ao seu vício e às suspeitas de ter apostado contra si próprio, Billie Jean libertou-se como pessoa e cidadã. E é das mais respeitadas personalidades do mundo do desporto, aos 74 anos.