Votos de indignação
Não é de hoje, nem é dos tempos do Chega, que as forças políticas se dedicam a apresentar votos de pesar ou de louvor sobre tudo e sobre nada. Nem é de hoje, e muito menos dos tempos do Chega, que a Assembleia da República se vê inundada de votos ou resoluções que não servem para outra coisa que não para fazer títulos de jornal, para criar polémica, para supostamente desmascarar uma qualquer força política.
Há muito que esse hábito se enraizou, e há muito que a arte se aprimorou através de várias táticas destinadas a atrair jornalistas e cliques e títulos mortíferos. É normal que se intensifique com partidos com menos meios.
Querem um exemplo de tática, que é infalível e que condena injustamente todos aqueles que se opuserem à aprovação desses votos?
Faça-se um voto com o título mais consensual possível, com uma parte deliberativa inócua, mas com um arrazoado interlocutório cheio de considerações parciais e até radicais. Por exemplo, faça-se um voto a favor do ambiente, com uma parte deliberativa ensossa, mas cheio de considerações contra a economia de mercado ou contra a União Europeia ou contra qualquer outra coisa que manche a unanimidade. Esse arrazoado impede muita gente de votar a favor do voto, por mais favorável ao ambiente que seja, e portanto o mesmo é chumbado.
Qual é o resultado da coisa, prontamente exibida em títulos? Partidos X e Y votam contra um apoio ao ambiente. Choque e pavor. Cliques e cliques e comentários e crónicas: como é possível, em que mundo vivemos para que X e Y sejam contra o ambiente?
Tática conseguida, portanto, permitindo que uma ideia absolutamente errada se propague, incentivando o aprofundamento e a repetição do engenho. E disso se tem feito a nossa história parlamentar nos últimos anos, muito antes de estes novos partidos lá chegarem.
Querem um exemplo concreto, real, não meramente exemplificativo? Lembram-se de quando os eurodeputados do Bloco de Esquerda aproveitaram uma votação contra uma resolução por estes apresentada para virem dizer que quem tinha votado contra tal resolução queria a morte dos refugiados que cruzavam o Mediterrâneo?
Foi um êxito mediático sem precedentes, com os órgãos de comunicação social a repetir a coisa como se fosse mesmo verdade, como se fosse mesmo assim. O desmentido e os polígrafos servem depois de pouco. A mensagem passou. Um êxito tão grande que só abre espaço e caminho para que essa tática se repita e intensifique.
Se foi preciso o Chega para acordarmos para este género de diligências, que não servem para coisa alguma que não para o pugilato político, muito bem. Mas convém ter memória e ser justo e fazer alguma autocrítica.
E, já agora, talvez fosse de ler cada um desses votos e cada uma das suas entrelinhas antes de fazer títulos e comentários e manifestações de indignação. É que essa é a única forma de acabar com estas tergiversações e de nos dedicarmos ao essencial.
Advogado