"Voltei para fazer o que não tinha feito"
Maria de Jesus Fraga emigrou com os dois filhos de colo para o Canadá: sobreviveu à neve de Toronto e trocou-a pelo sol da Califórnia, onde permaneceu 22 anos. Regressou à ilha Terceira à beira da aposentação e hoje faz parte do grupo de senhoras que passam as festas populares a cozinhar filhoses para angariar fundos no sentido de reconstruir a talha dourada da igreja da Ribeirinha
Há dezasseis anos, deixou-os de vida feita na Califórnia e voltou com o marido para a ilha onde nasceu. Agora, vende filhoses nas festas de São João, integrada num grupo de devotas que contribui para o restauro de uma igreja mutilada pelo terramoto de 1980. Fez novas amigas, recuperou as antigas, e veio reclamar à terra a infância que esta lhe roubou.
«Sabe quando é que eu brinquei?», pergunta, num intervalo da venda de filhoses, enquanto se ouve ao longe a fanfarra das marchas de São João. «O que eu não fiz antes, fui fazer depois. Vim saltar à corda aqui para a Terceira».
Tinha 60 anos quando saltou à corda pela primeira vez, no Centro de Convívio para a Terceira Idade da Freguesia da Ribeirinha. Tinham-se mascarado todos de crianças, explica, por alturas do Carnaval, e levado à cena brincadeiras várias, no cenário de uma escola fictícia, vagamente inspirada naquelas onde tinham andado.
«Foi mais uma coisa que a minha mãe me tirou», reflecte, tendo o cuidado de acrescentar, «porque ela não podia». Maria de Jesus era a mais velha de oito irmãos e a mãe tirou-a da escola antes de ela chegar à quarta classe. Tinha de ajudar a família nessa Terceira dos anos 1950 onde, na maioria das casas, «não havia nada. Nem rádio, nem televisão, nem magazines, nada». Recorda com uma certa nostalgia a pia de pedra onde lavava a roupa suja da lavoura, com água fria. Aprendeu a bordar, a fazer croché e a costurar (saberes que ainda hoje pratica) e, quando a família vendeu um boi para comprar uma máquina de costura, quis ir fazer um curso à cidade. Os pais não a deixaram. Recearam que fosse um pretexto para ir namorar.
O pretendente, com quem celebrou o ano passado as Bodas de Ouro, veio pedi-la em namoro no seu regresso de Angola. Tinham trocado correspondência e, durante dois anos, ele fez-lhe a corte à janela, às quintas e aos domingos, até se proporcionar o casamento. De Angola, trouxera uma ideia na cabeça - «a ideia de embarcar» - e, já depois de casado, de visita ao Canadá, em 1969, decidiu ficar por lá a trabalhar. Maria de Jesus juntou-se ao marido dezanove meses mais tarde, com o filho de um ano e a filha de 3 meses. Ficaram dez anos em Toronto. Seguiram-se mais trinta e três na Califórnia, primeiro em Tulare, depois em Modesto.
De dois em dois anos, enquanto os pais dela ainda eram vivos, vinham visitar a Terceira. Maria de Jesus notava: «a filarmónica está mais fraca; a igreja diferente, mais vazia». Trabalhou muitos anos, em fábricas e, em Modesto, na casa de uma família rica (a do patrão do seu marido), onde ficou 13 anos. Assistiu ao crescimento dos filhos deles, enquanto os seus próprios filhos cresciam, ganhando raízes na Califórnia.
«Sempre falámos português em casa», afirma, dizendo-nos que o marido não queria que os filhos perdessem a sua língua de origem. Mas a velha correspondência do casal quando ele estava em Angola foi toda parar à lareira. «Eles não iam perceber aquelas cartas porque não lêem bem o português.» E, não podendo deixar o legado aos filhos, também não o deixariam à mercê de curiosos. Das cartas que documentavam aqueles anos, só ficaram «umas quadras, que ele me escreveu».
Em 2002, o casal decidiu que estava na hora de regressar. Num contentor de 40 pés, trouxeram os seus haveres dos EUA e mudaram-se para a casa que haviam comprado na Terceira. Os filhos, criados na Califórnia, tinham ficado para trás. Ao ver a casa, o pai de Maria Fraga admirara-se: «Eh, mulher, p"ra quê uma casa tanto grande só p"ra duas pessoas?». Era pequenina a casa dos pais, e lá tinham morado dez. «As casas cresceram», dissera ele, «e as famílias mingaram».
Na sua casa na Ribeirinha, com vista para os ilhéus, onde cada peça de decoração é uma conquista e a coroa do Espírito Santo ocupa um lugar central na mesa de madeira envernizada da sala de jantar, Maria de Jesus recorda sem medo das lágrimas e com uma precisão desconcertante uma longa viagem que, no fim, a separou dos filhos e dos netos. Ao contrário de muitos que foram e nunca chegaram a voltar, ela e o marido deixaram a família na Califórnia e fizeram questão de regressar. «Vim fazer aquilo que não fiz», repete. «Eu tinha de ter doze braços para fazer tudo aquilo que quero fazer.» Critica a letargia das vizinhas, que nunca querem participar em nada e, no entanto, lamenta: «Mas os melhores anos já andaram».
Maria de Jesus Fraga trouxe consigo para a Terceira uma sede de viver intacta, quase infantil, como se o recreio onde não brincou na infância, ao fim de tantos anos, ainda estivesse à sua espera. O tempo, porém, atraiçoou-a.
Com Catarina Ferreira de Almeida
A literatura portuguesa tem sido sobretudo uma literatura de partida. O projecto As Palavras do Regresso, da autoria do escritor Joel Neto e da tradutora Catarina Ferreira de Almeida, marido e mulher, propõe a viagem inversa: a do retorno.
Consiste num livro centrado em diferentes tipos de regresso, todos eles com as ilhas dos Açores como primeira referência; num documentário de cinema e televisão (com realização de Arlindo Horta) feito a partir das entrevistas com esses que regressam; e ainda num blog de viagem e making-of, já disponível em www.aspalavrasdoregresso.com.
Do que falamos quando falamos de regresso? Quantas vezes menciona quem regressa a palavra «saudade»? E a palavra «casa»? E «mãe»? E «pertença»? Que palavras se repetem? Que palavras ficam por dizer? E, no fim da nossa viagem, qual será a suprema palavra do regresso? Eis a demanda.
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