Voltar ao palco com coração, cabeça e corpo em carne viva

<em>Sem um tu não pode haver um eu</em> é um solo de Paulo Ribeiro cheio de gente
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Um homem entra em palco, despe o casaco como se fosse a pele, olha-nos, fala-nos. Ninguém mais em cena e no entanto tanta gente - ele e os seus demónios, os seus anjos, os seus vivos, os seus mortos, os seus pesadelos, os seus sonhos, nós e os nossos (e tudo misturado que isto das dicotomias é uma força de expressão). Sem um tu não pode haver um eu é um solo de Paulo Ribeiro e uma citação direta de Bergman que traz para o centro da questão a relação entre um autor e o seu público.

O coreógrafo chama pelo nome o cineasta com quem dialoga o tempo inteiro enquanto fala consigo próprio, diz "Ingmar" como se diz de um amigo, um confessor, um instigador, um par e um mentor. Lanterna Mágica, a autobiografia do realizador sueco, deu-lhe o fio e o modo para se dançar e nos dançar em tempos difíceis. "Apesar de nos tentarem abafar com números e realidades que não são as nossas, a humanidade há de vingar. A humanidade com todas as suas catástrofes", há de ele contar do que esteve no princípio deste solo (podia escrever-se "resume", mas não há maneira de resumir um objeto tão tamanho), tão universal quanto autobiográfico.

"Será que se pode dançar Bergman? E se sim, será o quê?", perguntava-se. E responde, já em palco: "é colocarmo-nos em frente a nós próprios num espaço sem saída, ajustarmos contas, virarmo-nos do avesso. Dançar Bergman é sermos fiéis a nós próprios". Ora isso, sabemos, é coisa capaz de romper a esfera do infinitamente pessoal para atravessar o espaço e o tempo em direção a todos nós. Quem somos quando nos desmoronamos, como sobrevivemos ao terramoto, quem é essa pessoa que construímos com o entulho e o resto, em cima do que se desfez? "Paulo Ribeiro chora por todos nós", escreveu um crítico brasileiro, e esse momento de catarse está longe de ser singular.

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