Vocês são a resistência

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De Hollywood Norte ao Passeio das Estrelas são duas paragens de metro. A linha vermelha faz a ligação até à Baixa, que não é no centro de Los Angeles; esta cidade não tem centro. É uma amálgama de bairros e culturas tão diversas que parece ter o mundo inteiro cá dentro. Aconselharam-me sempre a evitar transportes públicos por aqui. Diziam-me que eram perigosos, maus e caros. Uma viagem de metro custa 1,75 dólares e nas carruagens veem-se sobretudo trabalhadores da classe baixa, gente humilde. Os clichés de Hollywood encafuados no comboio subterrâneo. Muitos hispânicos e afro-americanos, poucos ou nenhuns turistas. Os transportes públicos em Los Angeles são para quem não tem carro - ou para quem não quer pagar 15 dólares por umas horas de estacionamento, como eu, e depois ficar três horas no trânsito infernal e contínuo que assola a cidade.

Este fim de semana, quando percorria estas ruas perto do brilho de Hollywood, pensei no quanto significa que este seja o epicentro da resistência. Los Angeles como centro cultural, São Francisco como centro tecnológico, toda a Califórnia como último bastião do movimento progressista em derrocada. Depois de sair do metro, olhei para os carrinhos de comida nas esquinas da Sunset Boulevard: todos hispânicos. Empregados nos restaurantes, supermercados, bares, lojas. 40% da população da Califórnia é hispânica. Dos três milhões de imigrantes ilegais que cá vivem, 70% vieram do México, o que torna o estado no "ground zero" para a agressiva política de deportações que o presidente eleito Donald Trump quer implementar.

"Se não fosse pela Califórnia, Trump teria ganho o voto popular", dizem os estrategas do Partido Republicano, ainda a massajar o cotovelo dorido pela vitória retumbante de Hillary Clinton nesse capítulo - quase três milhões de votos a mais é obra para uma candidata derrotada. Ora, a Califórnia é a sexta maior economia do mundo. Dá o maior contributo dos 50 estados para o PIB norte-americano, com um peso de 13%. Se não fosse pela Califórnia, a América era outra. E agora é precisamente isso que os californianos querem: ser uma outra América. Não a das marchas do KKK, das objeções religiosas, das restrições ao aborto, da obsessão com armas de fogo, da homofobia; mas a da diversidade, da inclusão, do feminismo, da proteção ambiental.

Não me refiro ao calexit, em que alguns defendem uma secessão do estado que nunca vai acontecer. Refiro-me à forte liderança política que promete resistir às ordens do governo federal. O governador Jerry Brown, o secretário de Estado Alex Padilla, a primeira e única mulher a liderar os democratas na Casa dos Representantes, Nancy Pelosi, o mayor de LA Eric Garcetti, o procurador do Estado Xavier Becerra - todos arregaçaram as mangas em preparação para o embate que aí vem. Foi constituído um fundo legal para defender da deportação os imigrantes ilegais, que são vitais para a força de trabalho e economia da Califórnia, e serão mantidas as medidas de proteção ambiental que têm combatido a poluição e a seca destrutiva no Estado. Garcetti diz que Los Angeles se irá manter uma "cidade santuário" para os ilegais, e não é a única. O governo de Trump pode retaliar suspendendo os fundos federais que chegam às mãos dos californianos, cerca de 100 milhões de dólares - mas isto não é extraordinário num orçamento de 170,9 mil milhões de dólares.

Mais importante do que o dinheiro é o futuro. Existe um sentimento de desespero, confusão e amargura que só poderá ser dissipado quando Trump assumir a presidência e o estado assumir a resistência. De Silicon Valley vieram sinais contraditórios, mas de um setor profundamente liberal não esperamos menos que liderança intelectual e cultural. Aquilo que faz deste estado um dos melhores sítios do mundo é a liberdade para sermos quem quisermos, sem julgamento, sem medo, sem retaliação. Andar em West Hollywood e ver as bandeiras arco-íris a dar as boas-vindas a todas as orientações sexuais. Ir a Silver Lake ver o epicentro da cultura hipster. Passar pela Little Armenia, e depois por Korea Town, sentir o cheiro das comidas do mundo, falar espanhol como segunda língua, andar no metro às onze da noite e sentir que o maior perigo é perder isto. O sentimento de que a Califórnia é o que toda a América devia ser.

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