Você está despedido

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A primeira coisa que eu faria se estivesse no lugar de António Domingues seria despedir sumariamente o meu advogado. Processava-o. Exigia responsabilidades. Mostrava e exibia os documentos que eu trocara avidamente com ele durante meses, sms também, claro, evidente, porque não?, está tão na moda. Não deixaria pedra sobre pedra, tudo seria revelado. Seguia até uma queixa para a Ordem dos Advogados e reclamaria justiça em nome da lei.

Quer dizer: eu já sei que os governos têm sempre culpa, que os ministros são o que são, mas caramba - não tinha sido o advogado a dizer-me que bastaria mudar o Estatuto do Gestor Público para que tudo ficasse devidamente blindado e que assim eu não teria de expor-me aos olhos do Tribunal Constitucional e à ira da populaça invejosa? A lei de 1983, ele não a conhecia? Ignorava que se impunha sobre tudo, deixando o acordo fechado com o governo com o rabo de fora? Pois, se o meu advogado não sabia - ou se sabia não valorizou esse risco -, é ele o primeiro responsável por tudo ou parte do que aconteceu a seguir. Designadamente, ter perdido a possibilidade de fechar a carreira à frente do maior banco do país

Porque, chegados aqui, arrastado que foi o país - uma parte dele - para um par de sms que se espetaram violentamente na atualidade informativa, a questão ficou reduzida a um confronto entre Mário Centeno e Marcelo Rebelo de Sousa, sendo Domingues apenas comparsa (o advogado dele... nem vê-lo).

E no entanto, contudo e porém, eu pergunto-me: o que está realmente em causa? O que aconteceu de tão prejudicial aos interesses superiores do país? Houve gestão danosa, malandragem grosseira, os objetivos de Portugal foram afetados e diminuídos, a escolha dos gestores que iriam conduzir o banco público, os que foram indicados por António Domingues, revelou algum tipo de nepotismo, compadrio e troca de favores? Está provada a mentira ou apenas a ambiguidade semântica?

Já o escrevi aqui na semana passada: este tema é adubo partidário, é estrume que empesta o ar, mas até prova em contrário não passa disso. Agora é a vez de o PS sofrer na pele os efeitos tóxicos deste tipo de política chã com velhas tradições nacionais - na realidade, não só nacionais... -, mas o PSD já passou pelo mesmo e voltará a passar. Há males que não se curam e que explicam parte das nossas dificuldades ancestrais e futuras.

O que me salta à vista neste processo, além do horrível desperdício profissional que foi perder a anterior administração - tudo gente qualificada no cume das carreiras, embora sem qualquer noção de serviço público -, é que em momento algum ouvi seja quem for olhar para as dificuldades, complexidade e riscos deste processo. Os fins não justificam todos os meios, mas há atenuantes, há explicações que deveriam ser tidas em conta. Cada vez me espanta mais a facilidade com que se arrasa e se julga sem perceber o contexto e sem compreender o seguinte: gerir é complicado, resolver a crise de um banco público em plena hemorragia e ter de o fazer sob o aperto de Bruxelas e a brutalidade do BCE (o Banif e o BES não nos ensinaram nada sobre o método delicado e falível destes burocratas?) é dupla, triplamente mais difícil. O grau de exigência é quase impossível.

Até ver, Mário Centeno esticou demasiado a corda, sim. Ele deveria ter assumido o lixo deixado para trás logo que Domingues saiu de cena, a seguir ao Natal. Punha tudo em pratos limpos. Não o fez, pensou que o tempo iria sarar ou disfarçar a bagunceira; e agora sujeitou-se ao pior remédio de Marcelo: citas-me em vão, acabas na televisão, a dar uma conferência de imprensa estilo medieval. O ministro das Finanças não está realmente de pé, hoje está mais de joelhos. Ele pode dizer: atirem-me pedras, com elas farei o meu pedestal, visto que as finanças públicas melhoraram em 2016 - um facto, não uma opinião. Mas essa coroa não lhe chega. Nem chega ao país.

Portugal precisa do melhor Centeno. Precisa de um ministro não a vasculhar sms e e-mails que o possam talvez comprometer, mas de um Centeno concentrado no muro que se aproxima a grande velocidade: o fim ou o esbatimento acentuado do programa de compra de dívida pública pelo BCE, em dezembro, e a decisão (antes disso) de Bruxelas sobre a saída de Lisboa do procedimento por défices excessivos. Se a recapitalização da CGD contar - e ainda não é certo que não conte - para o défice, Portugal ficará ainda mais sujeito aos violentos humores dos mercados. E então tudo isto que aconteceu por estes dias ganhará a escala que realmente tem. Não vale nada, nada mesmo, face ao perigo de voltarmos a rebentar. Os sintomas de um país desatinado são evidentes. Um Portugal governado e disputado por sms era mesmo o que nos faltava...

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