Viver e morrer em família
Como dar conta do misto de explosão emocional e contenção narrativa de um filme como Irmão e Irmã? Digamos, para simplificar, que Marion Cotillard é uma das maiores atrizes contemporâneas. E que, contracenando com ela, Melvil Poupaud se excede num invulgar desnudamento dramático. O mérito pertence também, como é óbvio, à realização de Arnaud Desplechin e ao labiríntico argumento, cuja autoria o cineasta partilha com Julie Peyr, colaboradora regular da sua filmografia.
Alice (Cotillard) e Louis Vuillard (Poupaud) são dois irmãos desavindos, cujo afastamento de muitos anos, enredado num ódio visceral, vai ser (ainda mais) abalado pelo acidente que leva os pais ao hospital...
Por que não se querem encontrar? Lembremos, também de modo simples, que não estamos perante o moralismo de algumas conversas de talk show televisivo sobre problemas familiares. E sublinhemos a subtileza da materialização cinematográfica de tudo isso: Irmão e Irmã organiza-se como uma teia de momentos do presente e cenas do passado, que Desplechin vai ligando numa arquitetura que tem tanto de imponência como de contenção.
Assim, os ecos que provêm do passado de Alice e Louis diluem-se nas atribulações do presente, como se só houvesse uma medida do tempo: cada flashback, sendo uma informação daquele passado, acaba por se inscrever no filme como nova componente do presente. O puzzle que se vai desenhando resulta de uma invulgar depuração dramática: Desplechin constrói as suas cenas (muitas delas de angustiante brevidade) como se as personagens, e o próprio filme, procurassem algum tipo de apaziguamento emocional que, afinal, parece ficar cruelmente adiado para a cena seguinte.
Sem querer ser demasiado explícito em relação aos ziguezagues afetivos de Irmão e Irmã, lembrarei apenas que esta é uma história que começa sob o signo indizível da morte. Nessa medida, creio que de modo muito consciente, Desplechin desafia as regras de uma cultura (pobremente) hedonista, hoje em dia dominante no espaço mediático e, muito em particular, nas representações correntes das relações familiares - este é um filme sobre o papel que cada um é suposto assumir no interior da família e o peso insustentável que esse papel pode envolver.
O que nos devolve à complexidade do trabalho dos atores e à sua proximidade, quase tátil, com o olho implacável da câmara de filmar. Cotillard, em particular, é admirável nessa exposição que nos leva a olhar a sua Alice como um rigoroso mapa de emoções (afinal de contas, Alice é, profissionalmente, uma atriz), ao mesmo tempo que pressentimos que ela é a primeira a não saber tudo sobre o amor e o ódio que a habita. Em termos cinéfilos, isso pode dizer-se de outro modo: no atual cinema francês, Desplechin é o mais legítimo herdeiro de François Truffaut.