Viver com uma mão biónica

<p>João Carlos Pereira foi a primeira pessoa em Portugal a receber uma mão biónica, depois de ter perdido a sua, em criança, num acidente com fogo-de-artifício. Uma mão artificial que quase não se distingue de uma verdadeira e que «capta» todos os sinais que o cérebro lhe envia. Dois anos depois de a ter, João Carlos prepara-se para lhe pôr uma aliança de casamento.</p>
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Já passaram quase trinta anos e João Carlos passa todos os dias pela pedra onde uma brincadeira com um foguete lhe tirou a mão esquerda. «Há coisas que nunca se esquecem. Tinha 6 anos mas lembro-me como se fosse hoje», recorda. Perdeu a mão, mas a vontade de vencer superou tudo e aos 34 anos não tem dúvidas em afirmar que faz «mais com uma mão» do que «muitos com as duas». E não é uma mera frase feita. «Por exemplo nunca pedi a ninguém para me dar trabalho, pelo contrário, sempre vieram ter comigo», conta à nm. Mas a vida de João Carlos Pereira, pasteleiro de profissão, tem ainda mais alguma coisa de especial. Foi o primeiro a receber uma mão biónica em Portugal. Aconteceu em 2008 mas só agora João se sente à vontade para voltar a falar da nova mão. A mesma que hoje surpreende muitos ao conseguir mexer os cinco dedos ou pegar nos sacos das compras. Outros nem percebem quando o vêem a escrever um sms ou a atar os cordões. Até a cortar a relva do jardim de casa agarrando a máquina com as duas mãos.

E basta pensar para que os dedos, controlados por cinco motores debaixo da prótese, ganhem vida. «Na altura em que a coloquei todas as televisões e jornais falaram do meu caso. Estamos num meio muito pequeno e fui logo abordado por dezenas de pessoas, algumas até me pediam para não fazer nada porque era uma operação arriscada», recorda. Sempre de sorriso estampado no rosto, enquanto passeia pela marginal de Arcos de Valdevez, aos poucos a conversa solta-se. Lá no fundo não esconde o incómodo: «Sentimento de inferioridade? Nunca tive, mas o primeiro ano com a mão biónica não foi fácil. As pessoas vinham ter comigo e pediam-me para mexer os dedos, parecia mais um robô a fazer um espectáculo.»

As desilusões ficaram para trás e hoje ainda se surpreende com as coisas que faz e com que nunca sonhou. Mesmo as que para a generalidade parecem simples: «De vez em quando vou para o campo tratar a terra. É uma sensação única. Posso pegar numa enxada para cavar, o que nunca consegui fazer.» Mesmo umas pedaladas de bicicleta têm agora outra sensação: «Antes andava muito mal, todo torto para um lado e muito devagar. Agora é direitinho, só tenho é cuidado com o travão, porque é a roda da frente e se não controlo a força... Carro? Sem a mão biónica já conduzia, mas era de mudanças automáticas e mesmo assim ainda tive um pequeno acidente. Com esta mão nunca mais se passou nada, agarro no volante que é uma categoria.»

«Só preciso de pensar que quero mexer um dedo»

Ainda maior é a surpresa quando, em cinco segundos, consegue tirar a prótese. E João não tem qualquer complexo, porque sabe que falar ou mostrar o caso é dar o exemplo a outros: «Pesa um quilo, ou seja, o mesmo que o braço direito. Até para a coluna foi importante. Passou a dar mais equilíbrio ao corpo.» E o melhor é que nem obrigou a qualquer intervenção cirúrgica, «apenas» a vários meses de adaptação e um processo técnico para procurar os melhores pontos, debaixo do coto, de captação dos sinais eléctricos que o seu cérebro, ainda hoje, envia para mexer os dedos... que já lá não estão.

«Dou sinal e o dedo mexe. Mas é mais complicado no Inverno, com baixas temperaturas é difícil apanhar o sinal dos cinco tendões», explica, ao mesmo tempo que segura a chávena de café com normalidade. Pelo meio esclarece: «Dar sinal é o mesmo que pensar que quero mexer o dedo. De imediato o dedo faz o movimento de abrir ou fechar.»

Além de movimentar de forma independente os cinco dedos, outra grande evolução deste modelo é o facto de permitir uma espécie de sensibilidade da força, «para não continuar a apertar até partir alguma coisa». Na memória de João ainda está um episódio, há vários anos, quando, com a sua anterior prótese que de forma simples movimentava parcialmente dois dedos, um amigo o desafiou: «Disse-me para lhe apertar o pulso. Eu assim fiz mas depois não conseguia parar. Ele gritava com as dores e eu ficava mais atrapalhado porque não conseguia fazê-la parar», conta, divertido com o momento que se criou na altura.

Pasteleiro de profissão

João Carlos é um exemplo de força de vontade. Cortou o braço esquerdo quase até ao cotovelo e ficou sem parte do polegar da mão direita. Era a festa da terra na aldeia natal, em Prozelo, Arcos de Valdevez, e uma brincadeira típica de um rapaz «aventureiro», com fogo-de-artifício, mudou-lhe a vida. Passava o ano de 1982 e o rapaz, «cenourinha» como era conhecido, decidiu brincar com um foguete da festa, com o qual bateu numa pedra perto de casa. Nada voltaria a ser igual. «Não posso dizer que me tenha afectado porque era muito novo. Hoje não tenho recordações do que era ter as duas mãos, por isso está quase tudo bem», minimiza.

E foi assim que cumpriu toda a escolaridade, até concluir, na Escola Profissional do Alto Lima, o curso de técnico de informação turística, em 1992. «O meu irmão, que é pasteleiro, desafiou-me a ir trabalhar com ele nas férias e acabei por abandonar a área. A pastelaria dá mais dinheiro e até hoje, em quase vinte anos, nunca tive de pedir trabalho a ninguém», assume, confiante: «Das minhas mãos, saem aí uns cinquenta bolos de aniversário por dia», conta o agora chefe de turno de um dos maiores grupos de pastelaria de Ponte de Lima.

Adaptações e afinações

Em Outubro de 2008, ao fim de uma dezena de internamentos no Centro de Recuperação Profissional de Vila Nova de Gaia, João ficou pronto a receber a nova mão, processo que envolveu testes aos tendões e medidas exactas do coto, com a precisão do centímetro, para fazer os moldes da prótese. Modelo avançado, com cinco motores individuais que accionam cada um dos dedos, mas que ele próprio ajudou a desenvolver. «Fizemos muitas correcções, por exemplo, ao nível da localização dos sensores, para que funcionassem melhor ao detectar o sinal, ou na camada a imitar pele que fica por cima. Era muito grossa para dobrar e a bateria acabava por durar meio dia.» Como «um novo modelo de carro ao sair da fábrica, ainda tinha de ser afinado», diz.

Hoje, a autonomia da bateria da prótese, que todas as noites retira para dormir ou tomar banho, é de dois dias. «Tenho um armário que é só para as coisas da mão. É preciso ter muito cuidado e eu trato-a como uma criança que recebeu um brinquedo novo.» Cuidados que assume ter no dia-a-dia. «No trabalho, quando estou muito perto do forno, por vezes até a tiro. É muito dinheiro que está ali e tenho medo de a estragar, ainda para mais agora que já acabou a garantia», confessa. Hoje, dois anos depois, garante que nunca partiu sequer um copo com a nova mão mas nem tudo foi fácil: «Nos primeiros meses foi um sofrimento para apanhar os talheres. Estavam sempre a cair-me e foi uma coisa que tive de aprender de novo.»

Nova tarefa: aliança

Para já João prepara uma nova tarefa para a sua mão, neste caso para um dos dedos. «Já ando a tirar medidas para a preparar. Em Maio vou casar e será preciso pôr lá um anel. A ver se a mão aguenta com esse peso», brinca, ao mesmo tempo que solta uma gargalhada natural. Quase tão natural como a mão que o braço esquerdo voltou a ganhar.

Agora que usa a mão biónica «em pleno», João garante que o assunto não acabou para ele. «Gosto de ajudar as pessoas que passaram pelas dúvidas que eu passei. Vêm ter comigo e percebo que para quem perde a mão já adulto é muito complicado, querem desistir de tudo, e eu tento mostrar que não é bem assim. Há soluções.» Mais novos ou mais velhos, a atenção que dá a cada caso é grande. «Sei de um rapaz de 2 anos, de Esposende, que nasceu sem uma mão. A família está a juntar dinheiro para comprar uma prótese, mas se calhar não era a melhor solução.» E explica: «O rapaz, que se chama Rodrigo, já nasceu sem a mão, por isso nunca vai sentir falta dela. Se dependesse de mim, e como estamos a falar de muito dinheiro, era preferível esperar que ele fosse mais velho, para não a desperdiçar, por causa do tamanho. Ele vai crescer...», afirma, mostrando um à-vontade e confiança de quem sempre conviveu com o assunto.

Em Portugal, qualquer departamento de ortopedia de um hospital tem competência técnica para realizar a adaptação destas próteses. O fabrico e colocação destes dispositivos, considerados dispositivos médicos feitos por medida, obriga a uma prescrição médica individual especializada e que tem em conta aspectos morfológicos, funcionais e de saúde do utilizador. As tarefas e condições do contexto em que o dispositivo será utilizado também são levadas em conta, sempre com o princípio base de que «a tecnologia deve ter um impacte positivo na função do utilizador». Isso mesmo explicou à nm Emília Mendes, do Centro de Recuperação Profissional de Vila Nova de Gaia (CRPG), que conduziu todo o processo de João Carlos e que está especialmente voltado para a reabilitação e reintegração das pessoas com deficiências e incapacidades na vida activa.

Esta mão biónica de João Carlos Pereira custou trinta mil euros, mas o Estado, através do Instituto do Emprego e Formação Profissional, suportou o investimento. «Distingue-se das próteses mioeléctricas convencionais por permitir o movimento harmonioso de todos os dedos da mão e rotação do polegar», explica a técnica, recordando tratar-se de uma solução desenvolvida por um grupo de investigadores escoceses. «Agarra como uma mão normal, com dedos articuláveis, envolvendo os objectos com plena segurança. Cada dedo pode suportar até oito quilos e a mão permite dobrar, tocar, apanhar e apontar, aproximando-se assim dos movimentos da mão humana», acrescenta, sendo que depois deste primeiro caso o CRPG já levou a cabo outra intervenção do género. «Há pessoas que se fecham, pensam que tudo acabou, em vez de procurarem soluções para ultrapassar o problema. Por isso não tenho problemas em explicar, sempre que vêm ter comigo e pedem conselhos», conta João Carlos. E garante que os pedidos são de todo o lado. «Até já foram a minha casa para ver a minha. Eu não levo a mal porque só nós é que sabemos o que é ficar sem uma mão», desabafa.

Eléctrodos na pele

Como explica Emília Mendes, a mão biónica eléctrica é multiarticulada. Ou seja, os cinco dedos e as falanges mecânicas têm movimento, através de um sistema de cabos que, ligados a uma bateria e a sensores colocados à superfície da pele - eléctrodos -, constituem o sistema. «A cada movimento dos grupos musculares, é captado, filtrado e amplificado o sinal eléctrico emitido. Este está "ligado" a determinado tipo de movimento, abertura ou fecho da mão, rotação do punho», exemplifica. Entre outros aspectos, salienta a grande novidade deste género de prótese que é o facto de permitir o movimento individual dos dedos, o que possibilita um número maior de tarefas. «As mãos eléctricas "convencionais" apenas permitem o movimento do polegar, indicador e médio. E não possibilitam o movimento em diferentes posições do polegar.» Durante o processo de avaliação das condições para a pessoa receber a prótese, a existência de sinal eléctrico viável é um requisito essencial, já que será este a accionar o motor de cada dedo. Actualmente ainda não existe mão de tamanho infantil ou juvenil, apenas dois modelos de adulto, que podem ser aplicados em diferentes níveis de amputação até à desarticulação do punho.

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