Vítor Bento: "Banca tem de subir lucros para ser saudável e ajudar a economia a crescer"

Presidente da APB diz que subida dos juros é regresso à normalidade e não prevê que isso gere grande volume de incumprimento. Defende solidez do setor e vinca que é ao Estado, não aos bancos, que cabe o papel social.
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Vítor Bento é licenciado em Economia pelo ISEG, tem um mestrado de Filosofia pela Universidade Católica, é doutorado em Estudos Estratégicos pela Universidade de Lisboa e com especialização em Corporate Governance. Foi, entre outros cargos, consultor do Banco de Portugal, CEO do BES e do Novo Banco e presidente da SIBS. É hoje presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB).

O Banco Central Europeu prepara-se para subir as taxas de juro. De que forma isto vai impactar as famílias?
Em primeiro lugar, convém termos presente que vivemos um período de anormalidade com taxas de juro negativas. É importante que se tenha isto presente e que se perceba o que são taxas de juro negativas. Para o cidadão comum: uma taxa de juro é equivalente ao dinheiro que estou disposto a receber para adiar o meu consumo hoje e consumir daqui a um ano. Isto sabendo que daqui a um ano posso consumir mais com o dinheiro que me pagam. As taxas de juro negativas são o oposto, sou eu a pagar alguém para daqui a um ano consumir menos do que poderia consumir hoje. Isto é uma irracionalidade, uma anormalidade. E historicamente não há precedente de um período com taxas de juro negativas com esta dimensão. Vamos reentrar na normalidade e espero que as pessoas tenham tido presente que este dia ia chegar. Sou do tempo em que havia taxas de juro a 30% - em circunstâncias diferentes... havia inflação e desvalorização da moeda. Mas mesmo em períodos mais normais, antes do euro, tivemos taxas de 7% a 10% nos mercados europeus. Já depois do euro também já tivemos 5% e a média da Euribor a seis meses, por exemplo, foi de 3,6%. Portanto, estamos muito afastados dessas médias e convém não entrar em pânico. Estamos a entrar num período normal, não anormal ou assustador.

E não é expectável que exista uma subida abrupta, não é isso que o BCE tem defendido...
Não, até porque o BCE tem um dilema relativamente aos objetivos que atribuiu a si próprio. Tem o objetivo da estabilização de preços, o controlo da inflação, e o objetivo de reprimir os prémios de risco das dívidas públicas dos países mais endividados. Compra para o seu balanço essas dívidas no sentido de manter as taxas de juro em níveis comportáveis para as economias, para não desencadear crises financeiras. Este dilema vai moderar a sua própria capacidade e disponibilidade de intervenção. Se não tivessem esse último objetivo, provavelmente o ritmo de subida seria maior. Contudo, convém que os agentes económicos não constituam expectativas inflacionistas, que se autoalimentam.

Isso significa, por exemplo, não subir salários como reação à inflação, porque depois isto estabiliza?
Sim. Do ponto de vista rigoroso, o que se passou não foi ainda inflação propriamente dita, porque inflação é o aumento generalizado e recorrente de preços. Aquilo que ocorreu, na sequência de vários choques na economia mundial, foi um aumento do preço relativo de determinados produtos; energia, cereais, etc. É uma alteração de preços relativos, o que significa que esses produtos transacionam com os outros a uma taxa de câmbio mais elevada. Quando há uma alteração de preços relativos desta natureza, os países importadores desses produtos perdem rendimento. Há uma perda em termos de troca e uma perda de rendimento que é incontornável. O que pode gerar inflação é por um lado haver um aumento muito grande da procura e a preocupação dos agentes económicos de tentarem recuperar pela via nominal o rendimento perdido. Nunca vão recuperar totalmente porque essa parte é incontornável. A única coisa que podem fazer é estabelecer níveis de equilíbrio com os preços cada vez mais elevados. Ou então, passar as perdas para outros, ou seja, haver uma redistribuição de perdas em que uns se conseguem salvar, à custa de outros, que vão perder mais do que aquilo que seria a sua quota. Convém é não tomar isto como um indicador pelo qual os salários têm de se ajustar.

Tendo em conta a normalização nas taxas de juro, e tendo sido pelas taxas negativas que spreads e comissões subiram, é expectável que agora estes tornem a baixar?
Isso são decisões tomadas por cada um dos bancos e cada um reagirá às condições do mercado da forma que entender. O que é importante no mercado é que haja concorrência, precisamente para que ninguém possa acumular lucro extraordinário. A partir daí, cada um faz o que entende e é importante que todos tenhamos noção de que uma economia saudável precisa de uma banca saudável. E uma banca saudável precisa de ser rentável, se não, não tem capacidade para atrair capital e consequentemente capacidade para apoiar o desenvolvimento. Temos de ter uma banca rentável e a rentabilidade que a banca tem apresentado nos últimos anos é insuficiente para atrair capital.

É insuficiente?
No ano passado, em média, a taxa de rentabilidade da banca foi na ordem dos 5% e o custo de capital estimado entre 8% e 10%. O que significa, se fizermos o alisamento aos 8% e tendo em conta o nível de capitalização da banca, perto de 40 mil milhões de euros, para que este capital seja minimamente rentável tem de gerar um lucro na ordem dos 3 mil milhões de euros por ano. Tudo o que for abaixo disso significa que a banca não está a obter rentabilidade suficiente.

O vice-governador do BdP disse no Parlamento que era provável que as comissões acabassem por baixar. Já a diretora do departamento de supervisão comportamental, desafiou o Parlamento a mexer nas taxas definidas administrativamente. Vê isso com bons olhos?
Enquanto sociedade portuguesa temos de escolher o que queremos. Se queremos estar na União Europeia (UE), temos de nos comportar em condições idênticas aos demais países da UE. Temos de ter condições para as empresas portuguesas poderem concorrer nos mesmos termos no espaço económico europeu e no mercado único europeu. Se começarmos a aplicar medidas de economia administrativa, só estamos a prejudicar a sustentabilidade das instituições e, portanto, a contribuir para o empobrecimento da economia portuguesa face às outras. É dentro deste quadro que temos de raciocinar. Obviamente que podemos fazer as opções políticas que quisermos, convém é que sejamos consistentes. Se quisermos sair da UE, podemos fazer tudo o que quisermos, mas sujeitamo-nos às consequências. Estando dentro, também podemos fazer o que quisermos, mas perde-se competitividade.

Nesta semana, o regulador adiantou que houve uma devolução de comissões e juros cobrados indevidamente na ordem dos 27 milhões, desde 2019. O que está a ser feito para que haja cada vez menos cobranças indevidas?
A primeira ilação a tirar é que é um bom testemunho de que as instituições estão a funcionar e de que os clientes têm instrumentos de reclamação quando entendem que estão a sair prejudicados. E quando é preciso repor situações anormais, são repostas e os clientes têm os seus direitos assegurados. Depois, os valores são pequenos, comparativamente ao que é o volume de negócio da banca, o que mostra que o número de potenciais problemas tem uma expressão muito diminuta.

A subida nas taxas de juro poderá fazer subir o incumprimento?
A subida por si não, o que pode aumentar o crédito malparado é se houver problemas na economia e, em particular para as famílias, se o desemprego aumentar. Isso sim, pode criar dificuldades de grande dimensão para algumas famílias, mas não todas. Quando temos uma taxa de desemprego de 10% significa que 90% estão empregados. O que pode criar dificuldades mais complicadas é o aumento do desemprego, mas ainda assim convém que relativizemos, não é necessariamente uma catástrofe. É óbvio que mesmo em situação de pleno emprego, o aumento de juro vai causar dificuldades a todas as famílias. As famílias vão ter de reajustar as despesas, mas esse é o processo normal da economia. A economia tem aspetos cíclicos, há alturas em que as coisas correm melhor e outras em que correm menos bem. Mas é uma questão de reajustar, ou jantamos fora menos vezes, ou alteramos o nosso padrão de consumo, etc. O que é expectável é que aquilo que está no horizonte seja acomodado pelas famílias. Se me perguntar se as famílias não vão sofrer se tiverem de apertar o cinto, claro, é pior do que se não tiverem de o apertar, mas não é uma catástrofe. Pode haver casos de vidas mais complicadas e que se vejam em situações de grande dificuldade. Para essas, existe o Estado, para atender a situações carenciadas. É precisamente para isso que todos pagamos impostos, para que o Estado possa assistir aqueles que são mais carentes em determinados momentos da vida.

Mas essa adaptação não é apenas às taxas de juro, as famílias estão já a lidar com aumento de preços, diminuição do poder de compra... e agora as prestações das casas. Os bancos podem ter aqui um papel ou cabe apenas ao Estado agir?
Nos bancos já há instrumentos criados para outras situações, que podem vir a ser reaplicados em situações mais difíceis. Uma das coisas que os bancos fazem é acompanhar os seus clientes. Se vê que o cliente tem problemas, mas são recuperáveis, pode sempre ser discutida uma forma de lidar com o problema. Cada banco discutirá à sua maneira. Depois, há instrumentos que permitem lidar com situações de maior carência. Mas sim, compete ao Estado dar assistência social às famílias em situações de carência. Acho estranho que perguntam sempre à banca o que é que pode fazer para diminuir a carga, mas não perguntam a quem vende energia ou as outras coisas todas. Convém, dado que as pessoas têm prestações regulares e contratos dos vários fornecimentos - e as hipotecas são um desses contratos -, que não haja a tentação de interferir num desses contratos. Porque se se interferir num está-se a subsidiar os outros. No fundo, é a transferência de rendimento de um setor para outros, é colocar a banca a subsidiar outros setores, que não são propriamente carentes.

Em que medida o Estado poderia ajudar a combater o malparado?
Não é para combater o malparado, é para combater as dificuldades das famílias para que estas possam pagar atempadamente. A questão do malparado é diferente e aí, obviamente, é uma questão que os bancos terão de resolver. Com os reguladores, porque os próprios reguladores limitam muito a capacidade de os bancos entrarem em acordos com os clientes. A partir do momento em que um crédito não é pago no seu tempo, tem de ser marcado e entra para crédito duvidoso. Isso obviamente afeta o balanço dos bancos e hoje em dia temos regulação muito apertada nesse sentido.

E poderia ser suavizado?
Não adianta estarmos a queixar-nos disso, porque a regulação é europeia e funciona em termos europeus. E também apertou por conta daquilo que aconteceu no passado. E aquilo que toda a gente quer, reguladores e sociedade, é que não seja necessário voltar a acorrer aos bancos e estes sejam capazes de resolver os seus problemas. Mas para que os bancos tenham esta capacidade, não lhes podem ser criados problemas artificiais, não se lhes pode impor serviço social que não lhes compete.

O novo limite de idade nos créditos vem atenuar a possibilidade de incumprimento?
Essa regulação acontece porque, em termos estatísticos face à União Europeia, teríamos um prazo médio mais elevado. Não resulta de uma dificuldade de cumprimento, estávamos desfasados e julgo que isso terá preocupado o regulador de Portugal. Mas também não me parece que seja por aí que venha grande mal ao mundo.

Já aqui disse que a banca tem tido níveis de rentabilidade abaixo do que seria suficiente. O que é que podemos esperar no atual contexto e nos próximos anos?
Espero que venham mais lucros, porque, insisto: uma economia saudável precisa de uma banca saudável, para ser saudável tem de ser rentável e, para isto, tem de ter resultados que atraiam capital e ajudem a desenvolver a economia. Se a banca tem estado com rentabilidade abaixo do que é necessário para atrair capital, significa que os lucros têm de aumentar. Mas isso é para bem da economia, embora haja aquela ideia de que se a banca aumenta os lucros isso é mau.

O PRR pode dar um impulso a esses resultados da banca, em termos de projetos e da capacidade de financiamento da economia?
O PRR vai trazer a possibilidade de dinamizar a economia, quanto mais não seja pela via das despesas. E se a economia tiver mais negócio, precisará de mais financiamento e isso abre mais oportunidades. Depois, se isso é mais rentável ou não depende das condições de preços e de mercados que cada um negoceie. O que o PRR poderá trazer é uma ampliação do mercado.

A banca está preparada para uma recessão?
É sempre difícil estimar a priori o impacto exato. Depende da dimensão da recessão, da distribuição dos seus efeitos, de vários fatores. Em termos genéricos, uma recessão fará esperar que haja mais crédito em dificuldade, e isso poderá materializar-se numa deterioração da qualidade do crédito. Dito isto, os bancos hoje estão muito mais bem posicionados, têm muito mais resiliência para lidar com situações adversas do que no passado. Todo o esforço feito desde 2012, de capitalização, de balanço de melhoria da governance tornou os bancos muito mais resilientes. E, portanto, mesmo que venha a haver resultados e impactos adversos, não é expectável que tenham uma dimensão que volte a criar as preocupações de há dez anos.

E faria sentido haver mais consolidação na banca portuguesa?
Eu sobre isso não me pronuncio, seria entrar na vida dos meus associados. Cada um tem a sua visão, se acha que tem dimensão suficiente, se acha que tem oportunidade para aumentar a dimensão, se podem ser conquistadores ou conquistados. Neste momento tudo indica que o mercado está satisfeito, está equilibrado e há concorrência.

O Tribunal de Contas diz que há risco de o Novo Banco falhar o prazo de reestruturação. Que consequências é que isso traria?
Não me pronuncio sobre nenhum dos meus associados sobre situações internas de cada um deles.

Não em concreto quanto ao Novo Banco, mas em relação à resposta que é dada sobre o banco ter ou não que acautelar o interesse dos contribuintes...
Eu percebo o interesse da pergunta, mas peço que perceba também a minha situação. É uma matéria à qual eu não sou analista independente. Tenho uma responsabilidade perante os meus associados e não me posso pronunciar sobre a vida interna dos associados.

A digitalização trouxe muita inovação ao setor financeiro. Os bancos apanharam este comboio já um bocadinho em andamento. Já recuperaram?
Todos os bancos tiveram de adaptar-se a esse novo desafio e cada um o fez à sua maneira. Mas isso é a beleza do mercado concorrencial. As várias instituições reagem cada uma à sua maneira, e depois a forma como todos reagem é que dá a reação do mercado. É óbvio que estamos perante um choque transformacional que atravessa toda a economia e também o setor bancário. E vemos, quer como clientes quer como observadores, o progresso que tem sido feito nessa frente.

E a desmaterialização e a digitalização têm riscos de segurança?
Bem, viver é arriscado. Tudo tem riscos e novas transformações criam novos desafios, e os novos desafios trazem risco. O que posso dizer concretamente é que a banca tem feito investimentos consideráveis na segurança informática, e a prova disso é que temos um nível de fraude em Portugal relativamente baixo, comparado com outros mercados, nomeadamente, com o europeu. É um bom sinal da resiliência face a esse tipo de riscos. É uma área onde os bancos investiram muito e tem um nível de segurança muito elevado.

Mas houve uma atenção maior desde os casos mais recentes?
A preocupação é permanente porque toda a gente sabe que quando se cria novas tecnologias abrem-se oportunidades para os dois lados. Isso implica um grau de sofisticação e um equilíbrio entre o grau de segurança e a comodidade. Neste momento, tudo indica que temos um equilíbrio perfeito nesta matéria: o nível de segurança é muito elevado, e o nível de comodidade também.

Outra transformação que afeta a banca é a sustentabilidade, com investimentos potenciais cada vez mais condicionados às metas ambientais. Está a ocorrer com a rapidez desejada?
Julgo que sim, que se está a andar ao ritmo que é desejável dentro da sociedade. A banca pela sua própria natureza e por algumas imposições regulatórias, vai ser um instrumento transformador da própria sociedade, na medida em que, sendo financiadora das empresas e das famílias, tem todo o interesse em que se adaptem para minimizar riscos que possam decorrer das questões ambientais e sociais.

Havia uma discussão antiga sobre os capitais da banca serem ou não nacionais, como afetaria os centros de decisão. A nossa banca praticamente já não tem capitais portugueses. Isso teve efeitos?
Essa é uma discussão de cariz mais político e estratégico. Compete à sociedade e é a sociedade que deve ter essa discussão. Eu represento uma associação que tem bancos com capitais de várias origens mas todos têm a mesma legitimidade de operar, e não creio que até aqui tenha havido sinais de ter havido alguma discriminação relativamente à economia.

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