Vistas curtas
Surpreendeu-me ver vários comentários conotados com posições ideológicas de oposição ao actual governo a desvalorizar a eleição de Mário Centeno para presidir ao Eurogrupo. Como já me surpreendera ver tantos comentadores com a mesma conotação a criticarem a Web Summit e a sua importância para Portugal. Creio, como expliquei há dois artigos atrás, que vários intelectuais e dirigentes políticos dessa área se tornaram reféns do ressentimento pela solução política que resultou das últimas eleições, perdendo a lucidez necessária para lhe criarem uma alternativa credível.
Foi a eleição de Centeno favorecida pelos astros políticos - sensato intento europeu de manter um equilíbrio político na governance das instituições europeias, preservando este lugar para um socialista, exiguidade da base socialista nos governos europeus, e contendores desta área limitados por inconveniências políticas -, resultando em mais acidente do que propósito, como escrevia o FT? Terá sido também isso, como são quase todos os lugares da complexa governance europeia e dos seus complicados equilíbrios. Não foi também por acidente que Mario Draghi chegou à presidência do BCE depois da óbvia candidatura alemã ter sido inviabilizada por desinteresse do então candidato natural? E Durão Barroso? E quantos mais?
Mas, mesmo reconhecendo o papel-fortuna, não se pode descurar tudo o resto, que é muito. Por um lado, é mérito do próprio - ou pode pensar-se que o lugar seria ocupável por alguém a quem não fosse reconhecido mérito para o efeito? Por outro lado, é mérito do país, que ainda não há muito tempo esteve à beira de uma bancarrota por incúria política, pelo que esta eleição testemunha o reconhecimento das instâncias europeias pelo sucesso do duro programa de ajustamento por que passou e da credibilidade que com isso o país (re)adquiriu. E o mérito desse esforço, e desse sucesso, é devido sobretudo ao governo anterior, cujo resultado este governo sobe preservar, apesar de toda a retórica em contrário. E é precisamente este mérito que os referidos comentadores perdem a oportunidade de valorizar, saudando a eleição. Mas é também mérito deste governo, por ter conseguido respeitar os principais compromissos com a moeda única, tendo a apoiá-lo dois partidos vociferantemente opositores desses compromissos, e assim ganhando credibilidade em Bruxelas.
A escolha do português reconhece também que as autoridades europeias não têm nenhum preconceito político relativo à actual solução política portuguesa, desde que ela cumpra as regras europeias e vá cumprindo os seus compromissos. Até lhes convirá, para marketing político, destacar precisamente que uma coligação política tão à esquerda seja diligente cumpridora das regras. E isto, goste-se ou não, é um facto e, sendo um facto, deve ser incorporado em qualquer análise política e, por conseguinte, em qualquer estratégia de criação de uma alternativa política. Ignorá-lo é autoderrotista.
Mas a escolha é também uma boa oportunidade para Portugal. Desde logo, porque lhe traz prestígio internacional, o que tem valor em si. Depois, e mais importante, vai permitir que o país possa participar mais activamente do que de outra maneira lhe seria possível no processo de reforma da zona euro, trazendo a esse debate um potencial de alargamento da compreensão dos problemas intrínsecos a uma união monetária, para além da perspectiva mais ortodoxa; nomeadamente, as responsabilidades simétricas pelos desequilíbrios dentro da união e as implicações sistémicas das acções individuais. Cabe agora ao governo português o bom senso de não estreitar a participação nessas diligência apenas à sua área política - o que, em última instância, lhe seria contraproducente.
Tem o lugar o poder de mudar as condições de funcionamento da zona euro ou nelas influir decisivamente? É claro que não. Esse poder resulta da relação de forças entre os vários intervenientes no processo e essa não se alterou com esta eleição administrativa. Mas tem um poder que, apesar de tudo é importante, e que pode ser inteligentemente usado: o poder de gerir a agenda, que é o poder que cabe ao presidente de qualquer órgão de governance.
É claro que esta escolha também envolve contrapartidas. Desde logo, obriga o governo a comprometer-se mais com os compromissos europeus (pleonasmo intencional), pelo que, tendo ganho prestígio na frente externa, fica com a vida mais dificultada na gestão da coligação que o apoia. O que faz antecipar acrescidas tensões na execução do Orçamento para 2018 e uma muito difícil negociação do Orçamento para 2019.
Por isso, e resumindo, a escolha é boa para Portugal e é particularmente boa para o governo, que bem precisado estava de alento, depois do atarantamento em que passou os últimos meses. E, como vários outros comentadores já referiram, cria adversidades aos parceiros de coligação à sua esquerda e - por problemas da estratégia que escolheu - à oposição à sua direita. O desafio desta será, então, saber transformar esta ameaça numa oportunidade, não lhe adiantando queixar-se da vida.