"Visita Guiada"
Paula Moura Pinheiro tem feito da Visita Guiada na RTP2 um veículo fundamental para o conhecimento do património cultural no sentido mais rico do termo. Tem sido um trabalho de serviço público que nunca poderemos agradecer suficientemente. E se falo no património e no seu valor para a sociedade contemporânea, lembro a importância da memória como realidade viva, que não pode ser encarada com indiferença, estando no centro das preocupações atuais ligadas à noção complexa de sustentabilidade cultural, que ultrapassa as considerações imediatistas ou algumas bandeiras epidérmicas de resultados quase vãos.
Há dias, confirmei, com especial agrado (sendo suspeito na matéria), o que acabo de dizer, ao ouvir o diálogo muito rico com João Carvalho Dias sobre o Museu Gulbenkian, no momento em que o diretor-adjunto chega à aposentação, todos esperando que continue o seu fecundo percurso de muito competente estudioso da História da Arte. Em cada uma das peças que escolheu, compreendemos a grande riqueza do conjunto único deixado por Calouste Gulbenkian, desde que, com apenas 14 anos de idade, o pai lhe ofereceu, como prémio dos resultados escolares, 50 piastras. Com este montante o jovem adquiriu num bazar 2 estáteres, moedas cunhadas na antiga colónia grega de Cízico. Independentemente do valor, esta compra foi um sinal do gosto especial que permitiu construir um acervo diverso e rico, designadamente uma das mais notáveis coleções privadas de numismática grega, que o museu apresenta.
É sempre com emoção que nos deparamos com o retrato de Helena Fourment, da autoria de Peter Paul Rubens, uma das obras preferidas de Gulbenkian. A pintura retrata a segunda mulher de Rubens e pertenceu à Coleção de Houghton Hall, Norfolk, propriedade de quem se considera ser o primeiro primeiro-ministro britânico, Sir Robert Walpole (1676-1745), com uma vida plena (21 anos de governo), mas um destino ingrato para a fortuna familiar. O notável quadro seria adquirido em 1779 por Catarina II da Rússia, tendo sido vendido pelas autoridades soviéticas em março de 1930. Kevork Essayan diria: "O Senhor Gulbenkian detém-se preferencialmente em frente de Helena Fourment de Rubens, descobrindo todos os dias algo de novo nessa mistura cativante de sobriedade e sumptuosidade." E, seguindo a Visita Guiada, temos de lembrar a representação por Rembrandt da figura de O Velho, sem dúvida uma das obras-primas da coleção. O próprio Gulbenkian escreveu, em correspondência ao seu amigo Saint-John Perse (Nobel da Literatura de 1960): "De todos estes amigos próximos (os meus quadros), o mais notável será sempre o Rembrandt, que revejo frequentemente tal como o tinha em casa, banhado por uma luz sábia, capaz de retirar desse admirável rosto intensa nobreza e suave severidade."
O percurso do Museu é fascinante, serpenteando entre as várias obras-primas reunidas por aquele jovem que começou por aplicar 50 piastras, como se fossem os talentos das Escrituras, que bem conhecia. Ao diretor do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, Francis Henry Taylor, Gulbenkian disse: "Colecionei durante tantos anos para meu próprio prazer e dei às minhas obras tanto de mim próprio, que não as considero coisas inanimadas. Muito pelo contrário, sempre me pareceu que correspondiam aos meus cuidados e ao meu afeto..."
O escrúpulo de Gulbenkian era servido pelo estudo permanente e pela procura do conselho dos maiores especialistas. No caso da ourivesaria, fixemo-nos nas figuras de Monsieur et Madame Thomas Germain, no quadro de Largillierre. Não há coleção mais perfeita. E a genialidade do colecionador demonstra como o património chega à contemporaneidade na paixão pela obra de Lalique. O Peitoral Libélula (de cerca de 1897-98) deixa-nos sem respiração pela síntese de beleza e de suavidade.
Que é a cultura senão a extraordinária possibilidade de ultrapassarmos as fronteiras do que é comum?
Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian