«Estes dois roubei-os em Camden Town (mercado de Londres), para aí em 1977», confessa Zé Pedro. O guitarrista dos Xutos & Pontapés «não tinha cheta» e os discos eram um som vital no começo de carreira de um punk rocker. Os singles furtados são dois dos pontos altos da história do punk: Anarchy in the UK e God Save the Queen, dos Sex Pistols – hoje peças imaculadas na colecção de vinil de Zé Pedro, ao lado dos sucessos românticos de Milu como A Minha Casinha, um dos maiores êxitos dos Xutos. O amor pelo vinil teve altos e baixos. «Quando apareceram os CD desinteressei-me e descuidei o vinil. Ter assumido um estilo de vida punk também fez que me desapegasse mais das coisas. Vivia pela rua, em casa deste ou daquele. Acabei por vender muitos discos na Feira da Ladra ou deixá-los pelo caminho.» A colecção ficou mais resguardada a partir do momento em que passou a pôr música no bar Johnny Guitar, nos anos oitenta. «Aí deixava-os num cantinho para não ter de andar com o carrego às costas», recorda..O vinil é agora mais uma actividade de coleccionismo e de rato de discoteca. «Sou capaz de fazer uma viagem para comprar um disco. Fico maluco enquanto não tenho a informação que quero. A história da banda, o registo. Acontece muito quando vou a Londres, onde há um mercado espantoso de coisas raras e antigas. Por exemplo, andei recentemente à cata de filmes e bibliografia sobre o Woodstock. Desde artistas que falharam a ida, a bandas que chegaram e não tiveram uma referência muito grande.» De resto, não descansou enquanto não conseguiu achar a série completa de seis discos do festival do Woodstock. Na colecção de Zé Pedro há raridades, mas não faz «trinta por uma linha» para ter uma primeira edição ou fazer negócio com um disco raro e inédito. «Se chocar com um disco raro sou capaz de o comprar num piscar de olhos, mas não vou à procura como um predador de raridades. Não contabilizo o valor da compra, mas o lado sentimental, a capa, a antiguidade, o grafismo.» Se nos tempos de punk desalojado pouco ou nada hesitava na hora de despachar um disco, agora é impossível Zé Pedro desfazer-se de um vinil. Numa vistosa estante na sala de estar da sua alegre casinha lá estão desde os venerados Clash ou Cult aos mais improváveis exemplares na discografia do histórico punk, caso de A Lenda d’El-Rey D. Sebastião (do Quarteto 1111, liderado por José Cid) ou o single Os Grandes Êxitos das Selecções do Reader’s Digest (apresentado pelo histórico radialista Jaime Fernandes). «Cheguei a vender o triplo do Woodstock na Feira da Ladra e já muitas vezes me arrependi. Se o encontrar irei comprá-lo de certeza absoluta», diz, veemente, à NS’..Os primeiros vinis (perdidos na vida de andarilho) foram comprados com uma mesada aos 13 anos (há quarenta): um duplo álbum da banda de rock norte-americana Chicago (Chicago Transit Authority) e Cosmo’s Factory, dos Clearance Clear Water Revival. O prazer de ouvir vinil, esse mantém-se igual aos primeiros tempos. «Na adolescência (passada nos Olivais), fazíamos uma vaquinha entre vários amigos e comprávamos discos através das listas de Inglaterra. Íamos a uma discoteca na Rua do Carmo, o foco de concentração dos maluquinhos da música lisboetas. Depois, todas as sextas-feiras, reuníamo-nos numa cave onde tínhamos uma aparelhagem porreira», recapitula com uma expressão de menino..Os álbuns – LP (long playing), como então se dizia, de 33 rotações por minuto – eram ouvidos em silêncio absoluto, do princípio ao fim. O lado A, o lado B, o segundo disco, se houvesse. Ninguém se levantava para passar uma faixa à frente, por maior que ela fosse, com o solo de bateria, do baixo... Em seguida, analisavam a capa, as letras, as origens da banda. Isto antes de Zé Pedro ter uma consciência profissional e de se tornar um guitarrista idolatrado e um enciclopedista da música. «Era o culto de ouvir discos, não aquilo de usar o controlo remoto e passar à frente. A coisa hoje tornou-se mais rápida e prática, mas menos gustativa. Nos CD, muitas coisas se perdem por falta de paciência. Agora, com o MP3, ainda mais se perde. Não há relação física com o disco», alerta..Porém, as coisas são cíclicas e, mesmo na moda, há retornos. «As novas bandas também procuram o antigo. Continuam todos a ir beber aos Beatles e à sua maneira simples de fazer música, que no final resultava complexa. Tenho uma teoria que é a de que os putos novos começam a ouvir o que os pais ouviam quando eles nasceram. Na pop-rock estava muito pesado o sinfónico quando aparece o punk. Era muito difícil ambicionar ser músico. Por mim falo, que nunca me imaginei a fazer obras como os Génesis ou os Yes», diz. A entrada do registo punk deu espaço para a rebeldia de cada um fazer o que quisesse dentro das artes. Ou, como sublinha Zé Pedro, «devolveu a arte à rua e tirou-a da caixa do elitismo»..Zé Pedro acredita que, «para quem gosta muito de música, o vinil vai ter sempre uma vida autónoma, um prazer distinto. No vinil ouve-se melhor a atenção do criador. E a arte da capa. O CD, salvo raras excepções, nunca teve uma arte gráfica tão explorada como o vinil.» Aponta os Tool, «que têm uma preocupação enorme na apresentação gráfica de uma capa». Grande parte dos artistas volta a ter a preocupação de editar (também) em vinil. Os Xutos, por exemplo, estão a reeditar toda a discografia em vinil com tiragens de quinhentos exemplares. «O Jack White, dos White Stripes, faz peças exclusivas para vinil que não chegam à net», lembra..Zé Pedro não hesita em classificar o vinil como o objecto mais conseguido da história da música. E onde o criador está mais protegido perante o ouvinte. «É onde vem ao de cima todo o fascínio, magia e hipnotismo. Até o ruído é belo. O ritual de calibrar o prato, limpar o disco, a agulha», descreve. José Moura, 41 anos, proprietário da loja de discos Flur, em Santa Apolónia (no lugar da antiga Valentim de Carvalho), não crê estarmos diante de um fenómeno de moda. «Nós, que estamos aqui há quase dez anos, nunca assistimos ao desaparecimento do vinil. É estranho quando se faz eco de campanhas de regresso. É claro que, quando falamos de consumidores de vinil, estamos a falar sobretudo do universo dos DJ. Mas para o consumo particular nota-se, de facto, um ressurgimento do interesse e em áreas que não têm que ver com a música de dança.».Sobre a mítica qualidade do som, José Moura não tem uma resposta definitiva de técnico ou audiófilo. «Sei que depende da prensagem. Se for maxi ou LP. Se for americana ou inglesa notam-se diferenças. A diferença de som consegue-se com a qualidade da aparelhagem. É verdade que o vinil tem um som mais quente. É o suporte mais carismático e um objecto para coleccionadores. Apesar das tiragens reduzidas, produz-se muito vinil novo. Até de mais. Há um boom no mercado das reedições. Saem discos todas as semanas», explica. Mais: «Há bandas que defendem ser este o suporte em que faz mais sentido a sua música. Creio que a tendência será para as bandas optarem pelo digital e o vinil em simultâneo.»Em Portugal, são as bandas mais underground que têm apostado no vinil. Cita o exemplo dos Loosers ou dos Tropa Macaca, que têm mais vinil do que CD editados. Quanto a vendas, «houve pessoas que deixaram de comprar vinil, sobretudo DJ, mas apareceram outras que já foram clientes de vinil. A maioria, arrependidos de se terem desfeito das suas colecções, vem à procura de reedições ou originais.».Na Flur não se sente um aumento substancial da procura, «embora a tendência seja de expansão». Discos que se destaquem no top de vendas? «O LP de Lindstrom & Christabelle. Há maxi-singles que são fenómenos, como os dois discos de house americanos, campeões de 2009, House of House e Still Going.» Zé Moura admite que consome quase só vinil porque tem «o ímpeto do coleccionador». Na altura de abrir a loja, em 2001, tratava-se de preencher um espaço de oferta de vinil. Hoje, é um espaço incontornável. Prefere o vinil por dar valor ao original e não é de comprar reedições, excepto quando os preços são incomportáveis – refira-se que um disco inédito chega a custar setecentos euros ou mais. No mercado regular, a diferença entre o vinil de reedição e o CD é pequena (um vinil ronda, preço-médio, os 16 euros)..Fazemos então uma visita guiada aos escaparates. Primeira escala, secção vintage, o lugar dos discos que não se encontram em CD e onde não há sequer reedições em vinil. A maior parte são de música popular dos últimos quarenta anos. José Moura escolhe, em primeira instância, um disco muito cobiçado dos Tubes, Outside Inside, «um cruzamento espantoso de rock e música de dança». Por regra, faz as compras em feiras, a maioria na Alemanha e na Bélgica. De lá vieram exemplares como Here With Me, o último disco de Omar S., produtor de house de Detroit..Pedro Vindeirinho, 31 anos, é produtor da Rastilho Records. Editou 12 discos, entre eles, dos Xutos & Pontapés, Dead Combo, David Fonseca, Mata Ratos, Ex-Wife, The Legendary Tiger Man ou Jorge Palma. As tiragens da Rastilho ficam-se, na maior parte das vezes, pelos quinhentos exemplares, «porque não há mercado para mais e porque a ideia é incentivar o espírito coleccionista, e quando esgotar, esgotou». Este mês, haverá reedições excepcionais dos Onda Martini, fruto de procura aturada, e do álbum Masquerade, de The Legendary Tiger Man. Quanto a esta última reedição, o motivo é «serviço público»: «Descobrimos que está a cobrar-se um preço muito elevado pelo disco (chega a custar 75 euros) nos sites tipo eBay e não há razão para as pessoas pagarem tanto», explica Vindeirinho.Quando a FNAC pega num negócio como o vinil significa que esse é um negócio de massas? «De massas acho que nunca será. Mas talvez se afirme pelo seu lado romântico. Está provado que o som do vinil é o mais puro e apaixonante. Depois, há o objecto em si, que é quase decorativo. Chego a comprar versões de vinil que nem sequer abro e o CD só para consumo. Mas nota-se um aumento sobretudo na compra de gira-discos», diz..Sobre as hipóteses de a pirataria ser liquidada no vinil, de cópia mais difícil, o produtor avisa que «já há um gira-discos que permite passar para um formato digital. Mas quem compra vinil não pensa nisso. A tendência actual é disponibilizar o trabalho em diferentes formatos (digital, vinil, CD, CD+DVD, Box), como fez há pouco o David Fonseca. Fica à consideração do comprador». Vindeirinho tem lançado CD e inclui o vinil de oferta..O volume de negócios não é chorudo, mas «dá para viver». Não à custa da editora, mas da loja online, a www.rastilhorecords.com, que vende de tudo, desde música a acessórios de roupa. «Faço discos por carolice. Para mim, editar vinil é acima de tudo um estilo de vida. A nível de editoras independentes, pouca gente vive só da edição de música. Vamos começar um projecto que permite que todas as bandas possam fazer vinil connosco, mesmo sem ligação à Castilho Records.» De resto, não há fábricas em Portugal, apenas produção (mastering e grafismo) e distribuição. A prensagem faz-se sobretudo em Espanha (empresas como a MPO, com escritório em Portugal), Alemanha ou República Checa (onde está a sediada a maior fábrica europeia, a GV Digital). Há um ano, Vindeirinho falou com um holandês sobre os custos necessários para montar uma fábrica. «Eram mais de cem mil euros. Para a indústria portuguesa, seria uma loucura instalar uma fábrica. Além de que o vinil é poluente», desabafa..Joaquim Paulo, 44 anos, fundador da Mad About Records, director de conteúdos da WayMedia e autor de livros para a Taschen, como Jazz Covers, fala da descoberta tardia do vinil como de «um mundo que viria a transformar-lhe a vida por completo». Fala ainda do «encanto de retirar a rodela 12 de um negro sulcado com música e assistir a um momento quase litúrgico, com o toque da agulha nas espiras desta rodela repleta de mistérios». E enobrece o vinil como quem fala de um ente querido. «O vinil tem cheiro. Tem alma. É um objecto lindo. E soa inequivocamente melhor. Nunca fui um audiófilo. Mas estremeço, com todos os meus sentidos, com a superioridade do seu som.» Prossegue a sua declaração de amor levando-o aos patamares do Olimpo. «O vinil envolve. Tem corpo. O vinil não é um ficheiro. É um objecto que, muitas vezes, assume o estatuto de obra de arte.»Há discos sem os quais não sabe viver e não os ouve senão em vinil, para os «compreender melhor» e sentir «mais profundamente». É o caso supremo de A Love Supreme, de John Coltrane, o disco da sua vida, onde a música só assenta com a poesia do vinil. .EntrevistaViriato Filipe, director de comunicação da FNAC.«Uma moda intemporal».Embora dirigida ao consumo de massas, a FNAC esteve sempre atenta ao potencial dos discos de vinil. Conta, hoje, com cerca de seis mil referências disponíveis nas lojas e disponibiliza uma grande variedade de acessórios e de produtos relacionados com o vinil, como gira-discos, pratos e sacos próprios para transportar os discos..Está a acontecer um retorno ao vinil ou trata-se apenas de um fenómeno de moda?Em 1998, quando a FNAC chegou a Portugal, já tínhamos uma oferta de discos em vinil. Lembro-me de que o público que se interessava pelo vinil era constituído por profissionais da música, como DJ e músicos, que vinham ter connosco à procura de álbuns de bandas internacionais e de importação. Hoje em dia, os discos de vinil são cada vez mais procurados por todo o tipo de público, independentemente da classe social ou da faixa etária. Foi há cerca de quatro anos que começámos a aperceber-nos de uma maior procura e de que algo estava a mudar. Os coleccionadores e os puristas do som do vinil continuam a adquirir discos de vinil, mas já não são os únicos..Qual foi a mudança de comportamento dos consumidores de música?Existe, hoje em dia, muito mais gente a ser conquistada pelo característico som do vinil e pelo ritual inerente ao seu manuseamento; colocá-lo no prato, ouvir os estalidos iniciais... A arte das capas datadas dos vinis também contribui para esta paixão revivalista. Até os mais jovens, entusiasmados com o legado musical de nomes consagrados como The Beatles, The Doors ou Jimi Hendrix, passaram a procurar o vinil por sentirem que, dessa forma, estavam mais próximos daqueles monstros sagrados, artistas que influenciaram a história da música. As pessoas que não eram coleccionadoras, depois de experimentarem ouvir música a partir de um disco de vinil, passaram a sê-lo. Por outro lado, também é interessante observar o comportamento do público mais velho que comprava vinis nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, que passaram a comprar música em CD e que, agora, voltaram alegremente a reviver tempos e música do século passado através dos vinis reeditados. Podemos dizer que se trata de um fenómeno de moda que veio dar mais visibilidade e democratizar o vinil mas que vai permanecer e conviver com os formatos CD e MP3. Criou-se um verdadeiro culto à volta do vinil. .Tem havido um interesse crescente por parte dos artistas portugueses em ter uma série limitada de vinil nos seus novos discos ou esse interesse é residual?É interessante ver que artistas nacionais como Ana Moura, Amália Hoje ou David Fonseca optam por lançar simultaneamente as suas novidades em CD e em vinil, apesar de as fábricas portuguesas estarem desactivadas e de o vinil fabricado em Portugal ser uma realidade ínfima e quase inexistente.