06h30, 19º C. .No Alentejo, em tempo de vindima, não é o povo quem mais ordena. "É a uva que manda", repetem, à vez, os enólogos da Quinta do Paral, situada na Vidigueira, concelho de Beja. Neste ano a uva ordenou que as vindimas começassem aos primeiros dias de agosto, algo surpreendente não fosse repetir-se já há 10 ou 12 anos. "São os efeitos do aquecimento global", explica Luís Leão, enólogo responsável da quinta que foi comprada em 2017 pelo alemão Dieter Morszeck..O sonho era criar vinhos premium e um enoturismo de luxo nos 107 hectares de terreno. Para as gentes da Vidigueira, luxo seria que o tempo não tivesse pregado a rasteira de antecipar o calendário e fazer setembro no mês de agosto. Porque, ao contrário do Douro, onde o terreno íngreme verga quem vindima, na planície alentejana é o calor que quebra..Neste ano, para fazer a vindima da quinta, que dura um mês inteiro, foram contratados dez trabalhadores, menos oito do que no ano passado. São oito mulheres e dois homens, a maioria portugueses, dado incomum uma vez que os campos têm vindo a ser ocupados por moldavos e ucranianos, paquistaneses, nepaleses e tailandeses.."Prefiro que sejam portugueses. Porque os estrangeiros não falam português e torna-se difícil explicar o que queremos", diz Luís Leão. São os que trabalham em silêncio, ouve-se só o som da tesoura a cortar rente ao pé do cacho, o barulho seco quanto o fruto cai no monte que enche a caixa branca. Cada um deles tem uma junto aos pés. Tesoura, caixa e chapéu. Resiliência. É preciso pouco mais para vindimar..Os restantes são alentejanos da Vidigueira, trabalham no campo desde sempre, mas também há quem se tenha estreado na vindima de 2020..Francisca Carreira, 50 anos, trabalha desde os 9. "Não tive tempo para brincar, mas gosto de trabalhar no campo. Já tive vários convites para ir para outros sítios, nunca quis", confessa..É rápida a vindimar, nunca deixa de abrir e fechar a tesoura, parece saber onde os cachos se escondem por entre as folhas, vai empurrando com o pé a caixa que se enche de uvas e avançando na carreira à medida que falamos. Nunca para. Sorri sempre..Percebe da poda, diz que neste ano "a uva está excelente", orgulhosa como se fosse sua a vinha, explica com paciência que apesar de a uva cultivada para fazer vinho não ser indicada para ir à mesa, não faz mal nenhum comê-la. Trinco uma bola pequenina, preta, quase roxa, envolta pela película que parece pó, e julgo-a boa..Francisca percebe um cacho pequeno que ficou esquecido na videira. Deixa-o ficar. "Os pardais também têm de comer", desabafa..10h30, 27º C. .Carlos Caipirra tem 27 anos, usa chapéu de abas largas, um sorriso aberto e uma gargalhada que anima o grupo inteiro. Com a amiga Soraia Cotovia, de 28, estreou-se neste ano nas vindimas. Está a gostar. Chamam-lhe "o cantor".."Canto de tudo, Tony Carreira, música brasileira...", admite. Garante que a vindima é um trabalho "bom", ele que já está habituado a trabalhar no campo, onde até não se ganha mal. "Mas quem trabalha acha sempre que devia ganhar mais, não é?". "O que custa mais é o calor", acrescenta. Sempre o calor..Para quem vindima, a semana de trabalho é de segunda a sexta, das seis e meia da manhã às duas e meia da tarde, uma pausa às dez e meia para comer uma sanduíche trazida de casa e para beber água, muita água. Viram-se as caixas da uva ao contrário, servem de bancos e de mesas, procura-se a sombra de uma grande azinheira, descansa-se do calor, ouvem-se risos. A segunda parte do trabalho é a que custa mais. "Depois das onze horas o calor aperta", diz Carlos, o estreante.."No ano passado tínhamos 18 trabalhadores, mas este grupo é mesmo muito rápido, já apanharam mais uva do que quase o dobro deles no ano passado", conta o enólogo responsável pela Quinta do Paral..Tanto assim é que Luís Leão decidiu que irá pagar mais cinco euros por dia a cada um. O valor pago pela jorna é de 50 euros, entregues diretamente ao prestador de serviços, daqui ainda serão feitos os descontos para os impostos. Nenhum dos que vindimam quis dizer quanto leva para casa, feitas as contas. Recebem à semana, garantem que é bom dinheiro..12h00, 32º C..Não é assim tão comum, mas na Quinta do Paral mulheres e homens ganham o mesmo. O campo nunca foi igualitário, mas tal como o progresso chegou através da vindima mecânica - que não é usada nesta quinta - a igualdade começa devagarinho a chegar ao mundo rural..Os trabalhadores chegam às seis e meia da manhã, antes viajavam na mesma carrinha, com a pandemia e a obrigação de distanciamento social agora chegam divididos..Trazem roupa a tapar todos os pedaços de pele à vista, à exceção dos braços, meias por cima das calças, chapéus largos. A essa hora da manhã os termómetros marcam 19 graus Celsius, três horas depois já dispararam para os 27 e a Vidigueira irá chegar nessa terça-feira aos 38 graus..Mas é precisamente o calor do Alentejo que torna a uva "boa", embora também a possa destruir. As alterações da temperatura dos últimos anos não mexeram só no calendário da vindima, também ameaçaram colheitas..Há dois anos, nos dias 5 e 6 de agosto, as temperaturas chegaram aos 45 graus e por pouco não havia uva - foi no arranque do projeto da quinta. "Com calor ou frio extremos, a uva protege-se, fecha as tomas - é este o termo - e o amadurecimento do fruto fica comprometido", explica o enólogo..A vila da Vidigueira faz parte da "Califórnia portuguesa", principalmente as zonas que compõem a rota do vinho alentejano. Dos 22 mil hectares de vinha que o Alentejo concentra, seis mil estão aqui. Tal como as vinhas do estado norte-americano, famosas por produzirem um néctar de grande qualidade, a zona tem o mesmo tipo de microclima que concede especial qualidade à uva..As vinhas recebem o ar fresco do Atlântico e como em Napa Valley também aqui são protegidas por montanhas, no caso pela serra de Mendro, o que permite cultivar diferentes castas e até experimentar algumas estrangeiras, que é o que acontece na Quinta do Paral.."Na Califórnia a vindima está a acontecer ao mesmo tempo do que aqui na Vidigueira", diz Patrícia Pica, também enóloga da quinta, embora dedicada ao marketing, e que sabe o quanto é importante quando se tenta vender um vinho novo - e este não tem mais do que três anos - lembrar a história da vinha de onde ele nasce..A história da Quinta do Paral é nobre: a primeira referência da propriedade remonta ao ano de 1929. Em 1965, o conde de Palma e a mulher, a condessa de Santar, compraram a quinta. Um dia, alguém descobriu um marco escondido por entre as videiras: um P maiúsculo encimado por uma coroa e esse é agora o atual logótipo dos vinhos Quinta do Paral..O atual dono dos 102 hectares da propriedade tem hoje mais de metade das vinhas velhas da zona - são 12 dos 23,1 hectares de vinha registada antes de 1969. E quer comprar mais..As vinhas velhas - como são chamadas - são fáceis de identificar: os troncos da videira retorcidos pelas muitas décadas lembram a sua idade. É nestas videiras que a equipa de enólogos tem estado a apostar numa produção biológica: dão menos uvas, mas as que nascem são de extrema qualidade, perfeitas para o vinho de gama média-alta que a quinta produz.."O Alentejo nunca confinou".A pandemia veio abrandar o salto do projeto, pararam as exportações e o setor que compra os vinhos da quinta foi dos mais atingidos pela paragem da economia..Gente para trabalhar é que nunca faltou por causa da covid-19. "O Alentejo nunca confinou", diz Luís Leão. Ainda há muito trabalho no campo, mas o enólogo garante que "ninguém quer trabalhar"..Não há estudantes a ganhar a mesada debaixo do sol alentejano - é proibido trabalhar antes dos 18 anos - e os filhos passaram a ter vergonha de seguir o mesmo caminho dos pais..A vinha dá trabalho para quase o ano inteiro, depois da vindima, e ainda antes do Natal, vem a época da poda, quando se preparam as videiras para voltarem a dar uva em força. A Quinta do Paral produz também azeite e por isso há ainda trabalho na apanha da azeitona..14h30, 37ºC. .A vindima acabou por hoje no campo, e na adega é hora de limpar tudo e higienizar. Até aqui, o trabalho de quem esperava a chegada das caixas carregadas de uvas também nunca parou. É como uma dança em que quem impõe o ritmo é quem está na vinha: é preciso acompanhá-lo, devolver as caixas vazias, esperar que se tornem a encher, num vaivém que parece ensaiado..Quando as uvas chegam à adega, são colocadas na mesa de escolha manual - para a seleção dos cachos, depois vão desengaçar - é retirada a parte do pé e dos pequeninos ramos - e dali seguem através de uma tubagem para a cuba, onde vão sendo mexidas..Depois de esmagadas, o que acontece num equipamento que simula os pés dos homens a pisar as uvas - passam a chamar-se massas. O processo seguinte é o da fermentação, e o vinho irá depois repousar o tempo que for decidido para cada qualidade..O mês da vindima, movimentado e barulhento, é a exceção num processo lento e silencioso, onde se espera pacientemente pelo resultado de toda esta dança repetida vezes sem conta por todo o Alentejo.