Vim ver neve

Depois de 2006 já não podia ter nevado em Lisboa, nem no Alentejo, porque depois de 2006 veio o iPhone, e o Facebook, e o Instagram. E com filtros, hashtags, stories, já não tinha nevado da mesma maneira, nem em Lisboa nem no Alentejo
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Vim à neve com os miúdos, metade deles vão ver neve pela primeira vez. Também acho que foi aqui que vi neve pela primeira vez, na serra da Estrela. Ou foi numa viagem de carro em Espanha. Não sei. Eles vai ser aqui. Até o mais novo, que a frase que mais diz é "vamos ao Pingo Doci", já diz vamos ver a neve. O segundo a seguir pergunta se a neve molha e o terceiro a seguir a esse não pergunta muita coisa, já sabe tudo, sai à mãe.

Claro que todos eles já viram neve antes de virem ver esta neve de berma da estrada, nos tablets, nos telefones, nas televisões, até nos livros. Coisas que são de ver não há nada que não possamos ver em segundos, só precisamos de "cagar a batia" (como diz o mais novo). A antecipação que permite o mundo digital é total, mas apenas visual, uma parte da experiência. Uns acham que isso basta, outros que não basta. Terão razão uns e outros. Antecipar é uma forma de experimentar. Candeia que vai à frente... Mas tocar na neve, cair na neve, o cansaço e o desconforto gigante, ver a neve cair é importante. Como andar de elétrico ou provar fondue de queijo.

Em janeiro de 2006 nevou em Lisboa (faria sol em Nova Iorque?), e foi o último ano que podia ter nevado em Lisboa. Também nevou no Alentejo, onde estava nesse fim de semana. Depois de 2006 já não podia ter nevado em Lisboa, nem no Alentejo, porque depois de 2006 veio o iPhone, e o Facebook, e o Instagram. E com filtros, hashtags, stories, já não tinha nevado da mesma maneira, nem em Lisboa, nem no Alentejo. Seja como for, duvido que sejamos um povo que consiga estabelecer uma relação com a neve.

Há anos li um livro policial que era sobre neve, Smilla sense for Snow, de um dinamarquês, Peter Hoeg, o O com aquele traço no meio com antes se escreviam os zeros para os distinguir dos ós, hoje já ninguém faz isso. Já não me lembro nada do livro (há em português, vi agora, chama-se Smilla e os Mistérios da Neve). Havia um crime, mas havia sobretudo muita neve. Smilla tinha um jeito especial para tudo o que era neve. Os esquimós da Gronelândia tinham dezenas de palavras para neve. Nós só temos neve, uma palavra que dá para tudo. Se calhar as gentes aqui da serra têm várias palavras. Mas duvido. Neve é uma só coisa, uma só palavra. Somos nisso um povo de poucas palavras. Mesmo tendo Portugal a maior "batia" de especialistas de neve. Mas aqui neve é neve desporto, o esqui. Como se mar fosse sempre vela, e campo só futebol. Não há português que não saiba de neve e, contudo, nada sabemos de neve.

Mas antes de toda a gente saber o que era a neve, ou de saber tudo sobre neve, o que se sabia de neve era por tradição oral. Naquele bar mitzvah da portugalidade em que até aos 13 anos se decorava a "Balada da Neve", batem leve levemente como quem chama por mim. A "Balada da Neve" está para a poesia como a banana está para a fruta, é a primeira que se come, nunca se esquece, não é a mais sofisticada mas é docinha que sabe bem e não se esquece. Numa passagem de ano, Carlos Carrapiço, poeta popular interpretado por Herman, entrevistado por Vítor de Sousa e declamado por Rosa Lobato de Faria, a neve passou a ovário - "fui ver, era o ovário". Carrapiço diz que foi gralha, quem era era o Otávio, seu primo, não era o ovário, tinha havido um erro na impressão. Disseram-me hoje que o professor Jorge Miranda dizia aos alunos para decorarem poesia e não leis. Fui seu aluno, não me recordo, devia estar distraído a decorar leis, mas é bem possível que seja verdade. A "Balada da Neve" já a tinha decorado, e há uns tempos redecorei-a quase toda com um dos rapazes. Hoje, na serra, já se tinha esquecido de quase tudo. É fácil esquecer o que não se faz. Um dia ouvi uma conferência de um professor inteligente, coisa rara, não me lembro o nome, coisa também rara, mas lembro-me de ter dito que um dos problemas da emigração é o reverso do learning by doing - o forgetting by not doing. Também de cada vez que volto à neve é um recomeçar do zero. De negativos, porque já se sabe que vai haver dor, desconforto, que a sensação vai ser má. A não ser a alegria nos pezitos de uma criança.

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