Vila Martel em risco. Moradores vão lançar petição contra hotel
Sara Crick tem 35 anos, reside há cerca de um ano com duas amigas na Vila Martel, em Lisboa, tem contrato de arrendamento por mais dois e não vai desistir de tentar impedir que o espaço por que se apaixonou à primeira vista seja demolido para dar lugar a um hotel com estacionamento robotizado.
Em breve, irá lançar um abaixo--assinado contra o projeto que está ainda em apreciação nos serviços da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e que o executivo liderado por Fernando Medina (PS) tanto poderá vir a propor que seja aprovado como chumbado. Em causa está um imóvel que foi casa e ateliê de alguns dos maiores vultos da pintura portuguesa, entre os quais Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa e Eduardo Viana. O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, garantiu na quarta-feira em reunião pública do executivo que não tomará qualquer decisão sem apresentar o projeto aos vereadores da oposição.
A existência de um pedido de informação prévia (PIP) - um procedimento que, uma vez aceite, obriga a autarquia a licenciar, durante um ano, qualquer projeto que respeite as condições em que foi validado - sobre a Vila Martel, situada a meio caminho entre o Jardim de São Pedro de Alcântara e a Praça da Alegria, foi divulgado há mais de uma semana pelo jornal Público.
Desde novembro que os serviços camarários estão a analisar um PIP que prevê a demolição de quase toda a Vila Martel, o desaterro da encosta e a construção, no mesmo local, de um edifício de 14 pisos, oito dos quais enterrados, abaixo da cota da Rua das Taipas. Os restantes seis subirão cerca de 17 metros acima do solo. A intenção será que os primeiros 12 andares sejam afetos a estacionamento e os dois últimos pisos destinados à ampliação, com mais 24 quartos, do hotel já em construção mais acima.
A ampliação foi confirmada na quarta-feira pelo vereador do Urbanismo Manuel Salgado, que, em resposta à vereação do PCP, adiantou que a intervenção prevê a instalação de um "sistema de elevadores" que permitirá criar "dois acessos" ao hotel já em construção. O projeto, reconheceu, envolve "parte da vila operária" com mais de um século.
Mandado construir, segundo o Diário de Notícias de 10 de janeiro de 1944, por José Trigueiros de Martel - um dos fundadores, em 1880, do jornal O Século, extinto em 1977 -, para "refúgio e mansões de trabalho de pintores e escultores", o imóvel viu nascer dentro das suas paredes o célebre retrato do escritor Antero de Quental pintado por Columbano Bordalo Pinheiro e a escultura do Cristo Rei, de Francisco Franco. José Malhoa, Carlos Reis, Eduardo Viana e, mais recentemente, Nikias Skapinakis foram outros dos autores que ali deram largas à sua imaginação.
Se o PIP for votado favoravelmente, só os dois ateliês localizados nos extremos da Vila Martel deverão ser preservados. As restantes casas, que se sucedem em fileira ao fim de cerca de 50 degraus a que se acede por um portão, serão demolidas.
Residente há mais de 50 anos
Entre elas está a de Isabel Mateus, 80 anos. Natural do Algarve, chegou àquele recanto da encosta da Glória há mais de 50 anos, quando se casou. A pequena habitação fora arrendada pela sogra, por 900 escudos, o equivalente, sem atualização, a 4,5 euros. Hoje, paga cerca de 200 euros e há muito que deixou de ter a companhia das crianças que brincavam no pátio partilhado por todas as famílias que ali residiam. O tempo, esse, ocupa-o a costurar e a cuidar das plantas e dos 15 gatos que por ali vão permanecendo e que não tem coragem de enxotar.
"Podiam alugar as casas que estão vazias. Há sempre procura", desabafa ao DN a idosa, para quem a ideia de construir ali um hotel com estacionamento robotizado não faz sentido. Assegura, por isso, que assinará o abaixo-assinado que Sara Crick pretende lançar em breve tendo em vista a preservação do espaço que, além da sua casa, é também o seu ateliê de carpintaria.
Menos preocupado com o possível fim da Vila Martel está João Dias, proprietário do café vizinho ao imóvel, que continua a pertencer à família Martel, com quem o DN não conseguiu falar. "É indiferente. Sou sempre a favor do desenvolvimento. É preciso é andar para a frente", defende, admitindo que, para quem ali vive, é triste ver a casa em risco de desaparecer.
"Não quero sair daqui. Parece que estou na província", reitera Isabel Mateus, antes de assegurar que, se tal vier a acontecer, não se irá embora sem ser compensada. "Deviam era arranjar as casas", acrescenta. Sara Crick concorda. "Entra água por todo o lado", garante, a indignação a transparecer na voz e a acompanhar a que tem sido expressa nas redes sociais por diversos lisboetas. O imóvel integra a Carta Municipal do Património.